Verdades a revelar
Com algo mais que três meses da pandemia da Covid-19 nos países mais ricos, inclusive na China, onde o novo coronavírus surgiu, e um mês e pouco no resto do mundo e no Brasil, algumas verdades começam a emergir. Parte delas já era conhecida antes da crise –– verdades inconvenientes, que só aparecem em situações de colapso profundo.
A novidade do isolamento social em alta escala, ou mesmo lockdown, que significa quarentena compulsória de tudo, de fábricas a eventos sociais e de entretenimento, foi a ação mais extrema contra o vírus –– e mostrou que funciona, apesar da resistência de Jair Bolsonaro. E atente-se que nem se chegou ao
lockdown no Brasil. Ele foi levado por uma das ficções desnudadas pela crise. Falamos disso adiante.
Em vez de cadáveres empilhados nas ruas, como ocorreu na epidemia da chamada gripe espanhola, em 1918, e se viu dias atrás no Equador, pediu-se (no Brasil) ou se exigiu, à força, (na Itália, em Nova York, em Wuhan, a cidade chinesa onde o coronavírus despontou) às pessoas que ficassem em casa, exceto as alocadas em serviços essenciais.
Hoje, já se verifica uma leve regressão dos casos constatados onde a pandemia se mostrou mais agressiva, como no norte da Itália. Lá, o vírus rapidamente colapsou seu eficiente sistema de saúde, e isso pelas mesmas razões que muitos no Brasil, com Bolsonaro à frente, questionam: a letalidade da Covid-19, desdenhado como “gripezinha”, segundo disse o presidente, e a recusa ao isolamento voluntário.
Milhares de vítimas na Lombardia levaram a nocaute o ceticismo dos italianos. Tal como também provocaram um choque de realismo entre os líderes políticos que faziam cálculo entre vidas salvas e custo econômico e empregos perdidos. O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, recuou, e ele mesmo acabou contaminado.
Donald Trump mudou de versão ao constatar que a eventual reeleição em novembro estaria liquidada se não mudasse o discurso e fosse ao Congresso pedir à oposição democrata aprovação a um pacote sem fim de trilhões de dólares para desligar a maior economia do mundo.
O Federal Reserve e o Tesouro dos EUA abriram a torneira, cederam crédito direto a empresas e pessoas sem mediação de bancos, puseram a solvência social e empresarial em primeiro plano. E... mandaram às favas os cânones da ortodoxia econômica, que aqui ainda algema a iniciativa do governo e leva Bolsonaro a criticar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, dos poucos políticos a enxergar na escuridão.
Populistas de folhetim
Em crises de saúde sem vacina nem tratamento eficaz conhecido, não há espaço para supostas “verdades” de supostos especialistas que as redes sociais propagam como milagre dos João de Deus lacradores dos perfis do Facebook e do Twitter. Negar fatos e a verdade põe vidas em risco. Disseminar informações erradas para fins políticos, e atentar contra as instituições da democracia, é imprudência demais –– mesmo para populistas de folhetim, os falsos mitos das redes.
No fundo, o isolamento como medida para prevenir o colapso do SUS, não da rede privada hospitalar, que está dando conta da demanda com seus profissionais e UTIs, explicita duas vergonhas não só nossas.
No mundo, constatou-se, com raras exceções (Taiwan, Coreia do Sul, Alemanha), o sucateamento dos recursos para a saúde devido ao longo período de “austeridade” fiscal desde a crise de 2008. Onde houve mais comedimento, os governos têm se saído melhor. Aqui, nem isso.
Brasil desconhece o Brasil
Vem de longe o descaso dos governos, apoiados pela ala “ilustrada” da sociedade, para com a maioria desamparada de tudo –– os “nossos” invisíveis, embora estejam logo ali as faxineiras, porteiros, moto-boys, motoristas uberizados etc. Eles são a maioria da população.
Moram em áreas e moradias precárias, guetos de doenças endêmicas, sem saneamento, trabalham como biscateiros. É a razão de o governo se surpreender com a massa que apareceu para receber o auxílio de R$ 600 ao mês –– 75 milhões. Esperava não mais que 51 milhões de informais. Foi o flagrante do país que desconhece seus cidadãos.
Isolamento sem compensação social, como este auxílio mirrado, não funciona. É o que Bolsonaro não entende: não é a prevenção que põe a economia em risco, é o desconhecimento de sua equipe econômica do que significa tratar a economia em tempos de guerra, como se diz.
“O desenho de políticas compensatórias exige a aposentadoria de um arcabouço conceitual macroeconômico anacrônico. Não é tarefa fácil. Ele está profundamente enraizado entre analistas, empresários e homens públicos, todos formados segundo os seus cânones, mas a gravidade do momento exige sua revisão imediata”, diz o economista André Lara Resende, autor do Plano Real, cujas ideias foram ouvidas e aplicadas pelo governo de Portugal, onde mora parte do ano.
Quem não sabe cria intriga
Na ala fardada do governo, há estudos alinhados com o que ele diz. Não há problema de pagamento, de dívida ou de emissão de moeda, se não configurar gasto público permanente com salários da burocracia. Risco de liquidez empoçada nos bancos se resolve com crédito direto do BC às empresas, como fez o Fed nos EUA.
Para dar rapidez, também é possível o governo reduzir impostos e voltar a cobrá-los passada a emergência. É o que trata a Câmara ao aprovar projeto que obriga o Tesouro a cobrir a arrecadação perdida pela parada da economia por estados e municípios, que é onde está a conexão de saúde e serviços básicos com a sociedade.
Bolsonaro acha que Rodrigo Maia conspira contra ele. O ministro Paulo Guedes diz que esse projeto vai “quebrar” o país. Aqui e ali se lê que seria “pauta bomba”. Ora...
Foi assim que os EUA saíram da quebradeira de 2008, superaram a depressão dos anos 1930, se reinventaram, além da Europa e o Japão, no pós-guerra, e se armam da mesma forma contra o vírus e a China. Quem sabe faz. Quem não sabe cria intriga, ensandece, intoxica e induz o pessoal que se diz “do bem” a fazer o mal.