A meta fiscal prevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020 permitia um rombo de até R$ 124,1 bilhões nas contas do governo federal, o equivalente a 1,6% do Produto Interno Bruto (PIB). O cumprimento dessa meta está suspenso pelo aval dado pelo Congresso com a aprovação do estado de calamidade devido à pandemia de Covid-19, provocada pelo coronavírus. Segundo as previsões de analistas ouvidos pelo Correio, esse rombo pode chegar a R$ 400 bilhões até o fim do ano, ou seja, o equivalente a 5,5% do PIB de 2019, de R$ 7,3 trilhões. Apesar de concordarem que essa piora não deverá ser levada em conta pelos agentes financeiros e agências de classificação de risco, é preciso que o governo saiba gastar com cautela.
Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, estima que o rombo das contas públicas deverá mais do que dobrar em relação à meta fiscal, passando para R$ 300 bilhões ou R$ 400 bilhões. “Haverá uma piora significativa nas contas públicas, mas necessária por conta da crise. Mas depois, será preciso fazer novos ajustes fiscais para conter o aumento expressivo da dívida. Será preciso um esforço redobrado, mas com o estresse político e crescimento baixo por conta desse ciclo ruim, o país poderá não conseguir voltar a crescer com um governo que não consegue governar”, lamenta Vale, que prevê retração de 2,1% do PIB neste ano.
O Brasil não tem o mesmo espaço fiscal de outros países desenvolvidos para gastar no combate aos efeitos econômicos da pandemia e, por conta disso, o grande desafio será conseguir garantir assistência e socorro financeiro também para os mais vulneráveis, como autônomos, informais e microempresas. “Se nada for feito, ou muito pouco, existe o risco de o capital da economia ser destruído, ou seja, a quebra de empresas”, alerta Alberto Ramos, economista-chefe para a América Latina do Goldman Sachs. Ele manteve a previsão de queda de 3,4% no PIB brasileiro após o governo anunciar, na sexta-feira passada, uma ajuda de R$ 40 bilhões para pequenas e médias empresas.
Dívida explode
No combate aos efeitos econômicos da recessão iminente, o aumento dos gastos públicos terá de vir por meio da emissão de títulos da dívida pública, que deverá explodir, podendo chegar a 85% do PIB. Mas, como as reformas necessárias não foram feitas e já estão descartadas para este ano, o processo de consolidação fiscal precisará ser retomado logo depois da crise, caso contrário, o país não conseguirá vender os títulos públicos no mercado para cobrir os rombos fiscais.
No caso do Brasil, os gastos fiscais devem aumentar e podem elevar a dívida pública pública bruta em até 10 pontos percentuais, passando dos 75,8%, de 2019, para algo entre 80% e 85% do PIB, neste ano, pelas estimativas dos analistas. Gustavo Arruda, economista-chefe do BNP Paribas para o Brasil, defende a adoção de medidas para evitar um aumento contínuo das despesas, a fim de conter o crescimento da dívida nos anos seguintes. “O governo precisará agir para manter o sistema financeiro com liquidez e fazer o máximo possível para evitar um crise fiscal a partir de 2021. É importante garantir que as medidas tomadas em relação ao aumento de gastos fiquem circunscritas a 2020. O governo não pode anunciar medidas que depois fiquem permanentes, porque vão piorar o quadro de ajuste fiscal”, afirma.
Vale, da MB Associados, vê com preocupação o isolamento político do presidente Jair Bolsonaro e as críticas às medidas de confinamento social adotadas pelos governadores. Segundo ele, a atitude do chefe do Executivo provoca um embate prejudicial às negociações com o Congresso para retomar as reformas estruturais que ainda não avançaram, como as reformas administrativa e tributária. “Esse comportamento do presidente não vai trazer tranquilidade para o mercado. Vai ser muito difícil fazer um ajuste fiscal ideal e aprovar as reformas necessárias”, destaca.
Ramos, do Goldman Sachs, reforça a necessidade da continuidade de um ajuste fiscal após a crise e minimiza os impactos da aprovação da reforma da Previdência no ano passado. “O governo vinha fazendo ajuste fiscal muito devagar. Levou três anos para aprovar uma reforma da Previdência fraca – porque não incluiu estados e municípios – e que mantém muitos privilégios. Pouco foi feito e, agora, não há nenhum tipo de resiliência para enfrentar a crise”, critica.
De acordo com o economista e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Márcio Holland, se o governo não aumentar os gastos em 5 pontos percentuais do PIB , a recessão pode se estender até 2021. “Neste momento, o governo precisa olhar para os trabalhadores formais e informais e para as empresas que precisam sobreviver ao choque agudo que essa epidemia causou na economia. Não dá para deixar destruir os empregos”, comenta.
Mas o grande problema é de onde virá esse dinheiro. As contas públicas estão no vermelho desde 2014, e a recente recompra recorde de R$ 35,1 bilhões de títulos do Tesouro Nacional é o reflexo de aumento da desconfiança de investidores para o aumento da dívida daqui para frente. Emissão de moeda, por exemplo, é considerada arriscada, por vir acompanhada de uma hiperinflação.
Em conversa com investidores do BTG Pactual, no último sábado, o secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, chegou a admitir que o déficit primário deste ano “vai superar 4% do PIB”. Em relatório recente, o BTG calcula que o impacto das medidas fiscais já anunciadas pelo governo deve chegar a R$ 338 bilhões, ou 4,6% do PIB. Esse dado inclui gasto novo, como os R$ 45 bilhões previstos para o pagamento de uma renda mínima de R$ 600 aos trabalhadores informais durante três meses, mas inclui antecipações de despesas, como os R$ 23 bilhões do adiantamento da primeira parcela do 13º salário dos aposentados, que não têm impacto adicional no Orçamento. O estudo também inclui os pacotes de medidas do Banco Central e dos bancos públicos já anunciados, totalizando R$ 1,8 trilhão.
Para o especialista em contas públicas e consultor do Senado Pedro Fernando Nery, nesse cenário mais crítico, é preciso considerar o fato de que, diante da dificuldade para emissão deedívida daqui para frente, a equipe econômica poderá lançar mão de medidas como aumento de imposto e corte de salários. “Se isso ocorrer, o governo tem espaço para ajustar sobre grupos mais confortáveis. Pode tentar reduzir jornada dos servidores que ganham mais ou propor a contribuição extraordinária prevista na reforma da Previdência, ou pode revogar a isenção sobre lucros e dividendos”, enumera.
Como forma de impedir aumento brusco dos gastos da União, Nery sugere a distribuição dos lucros acumulados do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) aos donos dessa poupança. “O FGTS tem cerca de R$ 100 bilhões líquidos em caixa, que lastreiam um patrimônio líquido de montante equivalente — informa Igor Vilas Boas, consultor do Senado que é ex-presidente do Conselho Curador do FGTS”, escreveu Nery, em artigo recente. Pelas contas de Nery, se esses recursos fossem distribuídos entre esses 30 milhões de trabalhadores que possuem conta no Fundo, seria possível pagar um salário mínimo para cada um deles por três meses. “Pelas regras atuais, esse dinheiro não pertence aos trabalhadores, financiando empreendimentos de empreiteiras. Para ser liberado, é preciso de lei”, defendeu Nery.
Efeito limitado
Mesmo nos Estados Unidos, que pretendem gastar 10% do PIB de 2019 com o pacote fiscal de US$ 2 trilhões, as medidas anunciadas até o momento, para conter o impacto econômico do novo coronavírus, podem ter efeito limitado. Donald Hammond e David Wilcox, pesquisadores do Peterson Institute for International Economics (PIIE), de Washington, escrevem em artigo publicado recentemente que esse pacotão dos EUA não deve evitar a recessão nos próximos meses, mas “substituirá uma grande parcela da renda perdida por trabalhadores demitidos e deve permitir que muitas empresas evitem fechamentos permanentes”.