No ano em que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) completa duas décadas, o quadro financeiro dos estados é tão crítico quanto era quando a legislação foi criada justamente para ajudar os entes federativos a reequilibrar as contas. Considerada excelente por advogados tributaristas e especialistas em finanças públicas, a LRF vem sendo descumprida e sofre mudanças institucionais por conta das diferentes interpretações dos Tribunais de Contas Estaduais (TCEs), que chancelam a maquiagem dos dados fiscais apresentados pelos governos. A contabilidade criativa que deu origem às pedaladas fiscais, que provocaram o impeachment da presidente Dilma Rousseff, também conta com o aval do Judiciário e do Legislativo.
A despreocupação com as regras da LRF é tanta que, em 2018, 11 estados ultrapassaram o limite de 60% da relação despesa com pessoal com a Receita Corrente Líquida (RCL), uma das medidas mais importantes da lei (saiba mais no quadro ao lado). Em 2019, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul extrapolaram o teto do endividamento, de 200% da RCL, outra norma da LRF que proíbe a União de dar aval para novos empréstimos aos superendividados. Minas Gerais, cuja despesa com pessoal é de quase 80%, ignora a sanção prevista na legislação ao conceder reajustes ou promoções ao ultrapassarem o limite. Recentemente, deu aumento de 41% aos policiais, com a aprovação da Assembleia Legislativa. No ano passado, o Legislativo do Rio de Janeiro, que está no Regime de Recuperação Fiscal, autorizou o reajuste dos próprios servidores, na contramão.
Sancionada em maio de 2000, a Lei Complementar nº 101 até hoje está incompleta, diz José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e um dos autores da LRF. “Não fixaram limite para dívida federal, não criaram conselho fiscal, não revisaram limites estaduais. Mas não tenho dúvidas de que, sem a LRF, o cenário fiscal atual seria muito mais grave”, afirma. Para garantir avanços, o professor destaca que os desafios serão completar sua regulação, acompanhar a lei geral de orçamento, que precisa ser aprovada, pois a vigente é de 1964, e promover as mudanças que a revolução digital exigirá. “Lei é para ser cumprida, e quem deve assegurar isso são os tribunais de contas, e, no limite, o Ministério Público e a Justiça.”
Os TCEs, contudo, não seguiram uma padronização e passaram a adotar metodologias diferentes para avaliar as contas públicas, ressalta Gil Castello Branco, secretário-geral da Associação Contas Abertas. “É preciso uniformizar os procedimentos e mudar a forma de indicação dos ministros (escolhidos pelos governadores), com os tribunais sendo apêndices do Executivo”, assinala. Para resolver isso, bastaria aprovar uma das 70 medidas de combate à corrupção que estão paradas no Congresso. “A LRF é uma boa lei, se tivesse sido cumprida. As burlas ocorrem há muito tempo, mas a situação fiscal dos estados não era tão grave”, acrescenta.
Na opinião de Mirian Lavocat, tributarista sócia do Lavocat Advogados, a lei só funcionou corretamente por dois anos, de 2000 a 2002. “Ao fim do governo FHC, houve um corte. Lamentavelmente, porque é uma lei belíssima, que garante a consciência do Estado da necessidade de racionalização de gastos. A União virou uma grande gastadora e os estados, também”, diz. Muitas sanções não foram aplicadas e, sem punição, as irregularidades se multiplicaram. “A exceção foi a Dilma”, lembra. A ex-presidente perdeu o mandato por conta de pedaladas fiscais.
Manobras contábeis
A economista Selene Peres Nunes, outra autora da LRF, ressalta que, se a lei tivesse sido respeitada pelos governadores durante os 20 anos de vigência, os estados não estariam em calamidade fiscal em sua grande maioria. Apesar de ter funcionado no início, artifícios contábeis foram usados ao longo dos últimos anos para evitar o descumprimento da lei, que prevê medidas de austeridade quando os limites são desrespeitados. Para ela, que é especialista em contas públicas e doutora na área pela Universidade de Brasília (UnB), se a lei fosse respeitada nos últimos anos, não haveria a necessidade da criação da emenda constitucional do teto de gastos, muito menos da PEC Emergencial, enviada pelo Executivo ao Congresso no fim do ano passado, pois ambos possuem gatilhos parecidos com os da LRF. “Nada disso seria necessário se os governadores tivessem cumprido a LRF e os TCEs tivessem sido atuantes, não fizessem vista grossa e, muito menos, incentivassem as burlas para os gastos de pessoal”, lamenta.
Selene vê com tristeza o constante descumprimento da LRF, pois, quando entrou em vigor, a necessidade de controle e de disponibilizar as informações para o público estimulou a modernização das cortes de contas. “Agora, 20 anos depois com burlas, é preciso que os estados façam um novo pacto para a trajetória de gastos com pessoal e tenham um guardião da regra que funcione e jurisprudência nas decisões. Serão necessários mais 10 anos sem burla para que a regra volte a ser respeitada”, destaca.
“A LRF foi um marco importantíssimo paras as contas públicas e para a economia, estabelecendo limites para os gastos”, afirma o economista Felipe Salto, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado. “Ela veio para ajudar estados e municípios, mas vem sendo maculada por ações que envolvem a interpretação da lei pelos tribunais, que concedem liminares que distorcem totalmente o espírito da LRF”, destaca.
No entender de Salto, apesar de os dados oficiais ainda apresentarem alguns estados enquadrados, a realidade atual é que todos descumprem, de alguma forma, o limite de 60% da RCL para gastos com pessoal. “Por isso, se faz necessário constitucionalizar essa questão”, afirma ele, ao defender o teto de gastos e a PEC Emergencial, que criam gatilhos para controle de despesas, como proibição para conceder reajustes ou realizar concursos.
Em artigo recente, o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas, ao criticar que, “embora a Constituição e a LRF estabeleçam limites rígidos de gasto com pessoal, isso não impediu que alguns estados dessem interpretação flexível à lei, permitindo a expansão dos gastos”, deu alguns exemplos de rubricas que já foram excluídas da despesa total com pessoal em decisões dos tribunais de contas locais. “Ceará, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco, Distrito Federal e Mato Grosso já decidiram que o abono de permanência dos servidores públicos não compõe o limite. Minas, Bahia e Pernambuco decidiram que o adicional de um terço de férias dos servidores públicos não compõe o limite. Enquanto isso, Bahia, Pernambuco e Minas já decidiram que a indenização das férias e licenças-prêmio em pecúnia não compõe o limite. Tocantins e Paraíba já decidiram que a parcela retida na fonte a título de Imposto de Renda dos servidores públicos não compõe o limite”, elencou, no artigo.
Guilherme Bicalho, advogado especialista em Direito Tributário do escritório AB&DF, alerta que a aplicação da lei é mais deficiente nos estados. “A União tem mais visibilidade e a LRF é abordada na relação com o Tesouro Nacional, porque centraliza maior capacidade tributária e pode emitir títulos para captação de recursos”, sustenta. Segundo ele, como a lei penaliza mais estados e municípios, em termos de cumprimento, muitos usam brechas e burlas. “O Ministério Público poderia questionar as irregularidades, mas também participa do orçamento”, alega.
O especialista lembra que existe uma lógica por trás das dívidas dos estados com a União, que virou credora, porém muitos estados não fizeram o dever de casa e passaram a deixar de pagar (leia memória). No caso de inadimplência, pela LRF, a União poderia reter os repasses. “No entanto, o STF (Supremo Tribunal Federal) tem concedido a prerrogativa de deixarem de pagar e impede a União de fazer sanções. Ou seja, a Suprema Corte também chancela o descumprimento da LRF”, sublinha. “Agora, é ilusório achar que o Judiciário fecharia os olhos diante do colapso pelo qual passou o Rio de Janeiro, por exemplo, em estado falimentar”, pondera.
- Memória
Descontrole de gastos
Antes de a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) ser criada, os estados podiam emitir títulos de dívida, mas quebraram diante do descontrole dos gastos e foram obrigados a pedir socorro para a União. O governo federal arcou com o prejuízo dos entes federativos e, em contrapartida, estados foram proibidos de emitir dívida própria como condição da renegociação no fim dos anos 1990. O quadro fiscal de algumas unidades da Federação piorou depois de 2010, quando a União deu aval para os estados-sede da Copa de 2014 se endividarem acima do limite da LRF para construírem estádios. A prática de contabilidade criativa acabou mais utilizada desde 2013, de acordo com o economista Felipe Salto, diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI). “A LRF é uma lei que pegou. O problema é que, desde 2013, está existindo um retrocesso nas contas públicas, com práticas de contabilidade criativa e, por conta disso, a lei sozinha não está sendo respeitada e estão sendo necessárias medidas para constitucionalizá-la”, lamenta.