Depois de um breve período de inclusão social, a distância entre quem tem muito e quem não tem quase nada voltou a se aprofundar nos últimos cinco anos. Em pesquisa elaborada com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Fundação Getulio Vargas (FGV) Social constatou que, enquanto a população de baixa renda passou a ganhar ainda menos nesse período, os mais ricos melhoraram de vida.
O país passou “do crescimento inclusivo à recessão excludente” no período, alertou o coordenador da FGV Social, Marcelo Neri, ao divulgar a pesquisa, em agosto do ano passado. Os avanços percebidos até 2014 foram quase esquecidos nos anos seguintes, e muitos dos efeitos de políticas de inclusão, superados. Enquanto isso, o grupo mais afetado por desemprego e que paga proporcionalmente mais impostos é o que mais sofre com os efeitos da crise.
Mesmo com a economia desacelerada e o desemprego em alta, a elite não apenas manteve o padrão, como conseguiu subir ainda mais. Desde o fim de 2014 até o segundo trimestre de 2019, a renda da metade mais pobre da população caiu 17%, enquanto a dos 1% mais ricos fez o movimento contrário: cresceu 10%. O Brasil já conta 18 semestres seguidos com crescimento da concentração de renda, maior período da história. E tudo indica que as duas pontas da sociedade devem se afastar ainda mais, avaliam especialistas ouvidos pelo Correio.
Padrões
Diante dessa dinâmica, não é surpresa que, a cada R$ 100 da massa de rendimento do país, R$ 43,10 ficam com os 10% mais ricos, enquanto os 10% mais pobres mantêm R$ 0,80. Em 2018, metade da população ganhava, em média, R$ 820 por mês, menos do que um salário mínimo (R$ 954, à época), enquanto o rendimento médio dos 1% mais ricos era de R$ 27.774 mensais. Com esse valor, metade da população conseguiria se manter por quase três anos, nos padrões em que vive hoje.Domingas Batista dos Santos, 46 anos, se contentaria com os R$ 820. Sem emprego há três anos, a moradora da Estrutural recorreu ao programa Bolsa Família, pelo qual recebia R$ 270 mensais. Mas, sem que ela soubesse o motivo, o benefício foi cortado há oito meses. “Eu nunca tinha passado por uma situação dessas. Só é dificuldade, até entrei em depressão. Se eu tivesse uma ocupação, tudo seria mais fácil”, diz. De fato, o alto índice de desemprego, que atinge 11,9 milhões de brasileiros, é o principal fator para a alta da desigualdade, de acordo com a FGV.
O cálculo de rendimento considera salários, aluguéis, benefícios sociais e qualquer outro tipo de dinheiro que entre na conta todo mês. Ainda assim, mesmo juntando todas as possíveis fontes, 13,5 milhões de brasileiros recebem menos que R$ 145 por mês e estão, pelos critérios do Banco Mundial, em situação de extrema pobreza. Para se ter noção da dimensão do número, ele equivale a mais do que toda a população da Bolívia ou de Portugal.
Piora
Não que a diferença social antes fosse pequena, em um país que carrega o peso de ser o sétimo país mais desigual no mundo, como mostra relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) divulgado em dezembro do ano passado. Já ruim, a colocação piorou em relação à de 2018, quando o país estava em nono lugar. Como os dados relativos à pesquisa são do ano imediatamente anterior, não podem ser atribuídos à gestão de Jair Bolsonaro.
Ainda assim, especialistas não têm visto engajamento do governo em reverter as perdas. Sem uma mudança drástica de direcionamento de políticas públicas, o cenário deve piorar nos próximos anos, acredita Kátia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil, entidade que trabalha na busca de soluções para o problema da pobreza, desigualdade e injustiça. Para ela, não há sinais de que o Brasil, a curto prazo, adote uma postura diferente, com foco em inclusão social.
Kátia argumenta que nenhuma das iniciativas que ajudaram a diminuir a desigualdade nas décadas passadas tem sido prioridade do atual governo. “A melhora teve a ver com aumento real do salário mínimo, com políticas sociais que fazem complemento de renda, com inclusão de negros, com cotas, com políticas públicas para mulheres. Estamos em um momento em que todas essas políticas estão andando pra trás”, avalia.
Algumas melhoras percebidas até 2014 indicavam a esperança de uma inversão nesse cenário. Mas os efeitos de políticas como a criação do Bolsa Família foram logo superados nos anos seguintes. Entre 2015 e 2017, com a inflação que chegou aos dois dígitos, o benefício do programa ficou congelado. Nesse período, a extrema pobreza aumentou 40%, segundo o estudo da FGV.
O enxugamento do programa é um dos problemas centrais que justificam o aumento da desigualdade, na visão do professor Naércio Menezes, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper. O caminho para começar a reverter o problema, portanto, é priorizar o Bolsa Família. Para ele, é preciso aumentar o valor pago aos núcleos mais pobres e localizar as famílias que ainda não foram cadastradas. Em resumo, aumentar cobertura e valor.
Para o economista, esse é “o meio mais efetivo para reduzir desigualdade”. “Nos últimos anos, houve corte de beneficiários e reajuste tímido no valor pago. Tem que inverter essa política. Isso vale muito a pena, mesmo que gastem mais recursos, porque está formando crianças, crescendo famílias que seriam prejudicadas pelo resto da vida”, explica Menezes. “É importante, inclusive, para diminuir impactos da crise, porque ativa a economia local, e não só a curto prazo”, acrescenta.
A prioridade deve ser evitar que a situação piore para as famílias mais pobres, ressalta. A urgência se explica pelo fato de mais de 23,3 milhões de pessoas terem passado para a linha de pobreza no Brasil de 2015 a 2018. Mesmo que indicadores econômicos comecem a melhorar, o país ainda terá um longo caminho, caso queira correr atrás do prejuízo. Se o país crescer 2,5% por ano, de forma balanceada, na próxima década, o melhor resultado possível é voltar aos níveis de 2014 em 2030, pelos cálculos de Marcelo Neri. Quase uma década e meia perdida na luta pela erradicação da pobreza.
* Estagiário sob supervisão de Odail figueiredo
Congresso debate agenda social
Garantido o avanço de pautas econômicas e de ajuste fiscal, a agenda social passará a ter mais atenção do Congresso em 2020. Uma das discussões em pauta é colocar o programa Bolsa Família na Constituição, para que deixe de gerar insegurança em época de eleição e de ser usado politicamente por quem estiver no governo.A medida faz parte da agenda social elaborada pela deputada Tábata Amaral (PDT-SP) e apresentada, em novembro do ano passado, pelo presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A proposta relativa ao Bolsa Família inclui, ainda, um reforço de R$ 9,8 bilhões no programa.
Há outros pontos de destaque no pacote, que conta com sete projetos de lei e uma proposta de emenda à Constituição (PEC) sobre garantia de renda, inclusão produtiva, proteção ao trabalhador, água e saneamento, governança e incentivos aos municípios que combaterem a pobreza.
Uma das novidades é a criação do Benefício Infantil Focalizado para famílias com crianças de até seis anos que ainda não recebem o Bolsa Família, o que beneficiaria cerca de 3,2 mil pessoas. Além disso, os valores transferidos por criança, dentro do Bolsa Família, passariam de R$ 41 para R$ 50, enquanto o Benefício de Superação da Extrema Pobreza alcançaria R$ 100.
Kátia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil, elogia a iniciativa, que chega para preencher um vácuo deixado pelo governo federal. Ela afirma, entretanto, que o ponto de partida deve ser o combate ao racismo. “É importante que o Congresso coloque no centro um dos pilares da desigualdade, que é a questão do racismo. Significa trazer o pensamento político de especialistas negros e, realmente, trazer para o debate essa maioria, para que pense as políticas e elabore as propostas que vão ser colocadas em debate social”, explica.
Preconceito
A falta de representatividade também preocupa a ex-copeira Maria José Santos, de 51 anos. Separada há 11 anos e criando os três filhos sozinha, ela sofre por não conseguir voltar ao mercado de trabalho e aponta como uma das causas o preconceito racial. “Eu vejo que a desigualdade e a pobreza atingem muito mais as pessoas negras. O Brasil é muito racista”, afirma a dona de casa, que está com diversas contas atrasadas de água e luz.Maria José busca alternativas para sair da atual situação. Já vendeu dindin pelas ruas do Distrito Federal, e café, entre outras coisas. Mas destaca que essas opções não ajudam no sustento da casa. Atualmente, ela cursa o EJA (Educação de Jovens e Adultos) para concluir o ensino médio e entrar na faculdade. “Voltei a estudar no ano retrasado. Eu parei no primeiro ano e, agora, estou no último grau. Acho que os estudos ajudam e dão mais chances e alternativas de empregos”, diz.
O discurso de meritocracia desmancha com casos como os de Maria José, afirma Kátia, da Ofxam. “Fala-se muito nisso, como se todos partissem do mesmo lugar. Um país que tem o nível de desigualdade que o Brasil tem não pode se dar o luxo de ficar falando de meritocracia, porque não existe isso quando há uma maioria da população que tem salário abaixo do mínimo, que não consegue se manter, muito menos estudar”, explica.