São Paulo ; De tempos em tempos, a inovação tecnológica provoca danos em algum setor específico da economia. A era do streaming devastou a indústria dos CDs, que por sua vez havia destruído o mercado de vinis. Às vezes, são as mudanças de comportamento da sociedade que levam a rupturas. O cerco ao cigarro e a procura por hábitos saudáveis colocaram em xeque a indústria do tabaco. Recentemente, a Philip Morris, dona da marca Marlboro, anunciou que deixará de produzir cigarros. Quando os dois movimentos ocorrem juntos ; o avanço tecnológico e o surgimento de novos hábitos sociais ;, uma revolução está prestes a acontecer.
Poucos setores estão tão expostos às transformações da nova era quanto a indústria automotiva. De um lado, as empresas tradicionais são ameaçadas pela entrada das gigantes de tecnologia no negócio, como Tesla, Google e Apple. De outro, elas sofrem com as mudanças culturais. Se nos últimos 100 anos o carro foi objeto de desejo para diferentes gerações, agora ele é visto cada vez mais como um serviço e não como um bem privado. Em outras palavras: o jovem de hoje não sonha mais em ter uma máquina que dê orgulho ou desperte o prazer de dirigir, mas sim em usar o veículo apenas como instrumento de locomoção ; e usando um aplicativo para ter acesso ao automóvel.
Um estudo recente realizado pela consultoria KPMG mostrou o que está por vir. De acordo com o levantamento, o número de montadoras deve diminuir de maneira acentuada até 2030. Só vai sobreviver quem tiver a capacidade de se reinventar, o que nunca é fácil para companhias acostumadas a ciclos contínuos de crescimento sem precisar inovar muito.
;As montadoras, que implementaram um modelo de negócio consistente por 100 anos, estão atravessando um período de transformações sem precedentes;, disse, na ocasião do lançamento do estudo Ricardo Bacellar, líder do setor automotivo da KPMG. ;Como a mobilidade pessoal é mais ampla do que o fornecimento de um veículo, muitas montadoras planejam se tornar prestadoras de serviços. O tempo para criar oportunidades está pressionando os líderes dessas empresas.;
Os gestores das montadoras, de fato, nunca estiveram tão pressionados. Projeções mostram que a indústria automobilística global deverá produzir 88,8 milhões de carros e caminhões leves em 2019. Se o número for confirmado, representará uma queda de quase 6% na comparação com 2018, de acordo com informações da consultoria IHS Markit.
Ao que parece, o declínio será duradouro. No ano que vem, segundo estimativas da IHS, a previsão é de entregas globais de 78,9 milhões de veículos, o nível mais baixo desde 2015. A continuar nesse ritmo, em uma década o setor poderá fabricar menos de 50 milhões de unidades por ano, o que será devastador para a maioria das empresas.
Empregados
O recuo da produção de veículos já afeta os níveis de emprego. De acordo com um levantamento realizado pela Bloomberg News, as montadoras estão prestes a cortar mais 80 mil postos de trabalho. Os cortes começaram.
Recentemente, as alemãs Daimler e Audi anunciaram cerca de 20 mil demissões, seguindo os passos das americanas General Motors, Ford e Nissan, que também promoveram demissões nos últimos meses. ;A indústria automobilística está passando pela maior transformação de sua história;, declarou a Daimler no comunicado para justificar os cortes.
A empresa é uma das maiores empregadoras da Alemanha, sendo responsável por 140 mil postos de trabalho.Segundo Bernhard Mattes, presidente da poderosa Associação Alemã da Indústria Automotiva (VDA), uma das entidades de maior peso no país, o ritmo de cortes de empregos deverá ser ;mais pronunciado em 2020;.
Com a produção em queda e vendas menores, as montadoras são obrigadas a reagir. Apenas na Mercedes-Benz, o custo de pessoal chega a 13 bilhões de euros anuais. Em conferência de imprensa em Berlim, Mattes expôs sua preocupação. ;Vivemos uma mudança estrutural com investimentos altos e deterioração da dinâmica de mercado;, declarou. ;Muitas empresas sentem a tensão.;
Gillian Davis, analista da Bloomberg Intelligence, aponta os fatores que criaram novas dificuldades para as montadoras. ;A persistente desaceleração nos mercados globais continuará impactando as margens e os lucros das montadoras;, disse o especialista. ;Os lucros foram afetados pelo aumento dos gastos em pesquisa para o desenvolvimento da tecnologia de direção autônoma. Agora, muitas montadoras estão focadas em planos de corte de custos para evitar a erosão das margens.;
É consenso entre os analistas da indústria automotiva que a onda de cortes no setor deverá se concentrar na Europa e nos Estados Unidos. Em muitos países emergentes, o cenário é oposto. No Brasil, a retomada econômica ancorada no aumento do consumo já começa a trazer sinais positivos.
De acordo com a consultoria Bright Consulting, o mercado brasileiro deverá encerrar 2019 com 2,66 milhões de veículos leves emplacados, um crescimento de 7,7% na comparação com 2018. Em dezembro, a média de vendas diárias está na casa das 12 mil unidades, recorde para o setor. Em 2020, a Bright espera que sejam vendidos 2,85 milhões de automóveis no Brasil, resultado que confirmaria que o país está muito longe de replicar a crise das nações ricas.