Quem manda sou eu
Ao ignorar a lista tríplice escolhida em votação pelos procuradores do Ministério Público Federal para Procurador-Geral da República, o presidente Jair Bolsonaro obedeceu à Constituição, mas desagradou a corporação e quebrou a mística da Lava-Jato, representada no governo pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro.
A corporação queria manter-se como uma tropa singular na estrutura do Estado nacional desde que o então presidente Lula abdicou de sua autoridade em nomear o titular da PGR, em 2003, levando o MPF a, na prática, agir como sindicato, escolhendo, entre os seus membros, o trio de votados para a função. Lula, Dilma e Temer mantiveram a praxe, que o Senado, a instância da validação, também nunca questionou.
A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) se disse de ;luto; com a indicação do subprocurador Augusto Aras, o nome que Bolsonaro escolheu depois de escrutinar quase uma dezena de opções, inclusive o do mais votado na lista tríplice, e justificou a revolta com o argumento de que ela ;interrompe um costume constitucional de quase duas décadas;, como se a Constituição comportasse modismo.
Os procuradores da Lava-Jato lotados em Curitiba, onde Lula cumpre pena de prisão devido a crimes que deveria supor que seriam abonados pela categoria que tanto beneficiou, também se manifestaram com pesar ; uns e outros indiferentes à autonomia constitucional reservada ao presidente da República, como se ele tivesse afrontado o que a Lei Maior não conferiu à categoria dos procuradores. Uma liberdade que os ministros do Supremo Tribunal Federal, tardiamente, tentam delimitar.
Aras não disputou a preferência de sua classe, embora, desde o fim do ano passado, se movimentasse para se aproximar de Bolsonaro, pois, em seu entender, a PGR é um cargo de escolha privativa do presidente.
E mais: ele condenou, em entrevista à BandNews, em maio, o que chamou de ;corporativismo institucional; do MPF e a ;personalização; de seus membros nos inquéritos da Lava-Jato, implicando a ;criminalização da política; e a ;debacle da economia do país;.
Para um presidente cioso de sua autoridade, apesar de relapso com a liturgia do cargo, não haveria escolha melhor. Bolsonaro não se vê devedor da Lava-Jato, como não se via dos amigos generais que demitiu. Julga que se elegeu graças ao seu discurso extremamente conservador e anti -PT.
Governo molda seu destino
Dizia-se que a escolha do novo PGR moldaria a face e os destinos do governo Bolsonaro. Os destinos continuam incertos e, por ora, pouco promissores à luz dos movimentos erráticos, da linguagem troglodita e da subserviência dos assessores que supostamente deveriam suprir suas insuficiências operacionais e políticas.
Mas está claro que a autonomia mais de fato que de direito de órgãos como Polícia Federal e Receita, além do Coaf, que extinguiu e recriou com outro formato no Banco Central, lhe incomoda. Tais corporações vinham no pé do filho Flávio, quando deputado no Rio, num inquérito envolvendo quase 30 parlamentares estaduais. Mas só o dele vazou com detalhes e depois que ambos se elegeram, o filho, senador, e Moro já estar indicado para o ministério. Soou como algum aviso a Bolsonaro.
Independentemente das razões de Bolsonaro, a verdade é que o Estado brasileiro foi tomado por corporações desde a Constituição de 1988, num processo que vem transferindo paulatinamente o exercício do poder eleito para instâncias da tecnocracia que não se reportam a ninguém.
As origens da aversão
A maioria das distorções que apequenaram o desenvolvimento econômico e social no Brasil está no enfraquecimento do Estado, tocado por governos cerceados pelo poderio de algumas de suas partes desgarradas do todo e sem o recurso ao parlamento, pois também amesquinhado pelo método inescrupuloso usado pelos presidentes para formar maiorias.
Não só as autonomias mal legisladas pela Constituição explicam esse quadro caótico. Decisões do STF as agravaram, primeiro, ao vetar a cláusula de barreira aprovada pelo Congresso, reduzindo o número de partidos para facilitar a formação de maiorias parlamentares.
Depois, ao proibir o financiamento privado de campanhas, apossando-se de um tema legislativo e não judicial. E deixando em aberto o que se fizera até então com os partidos. Isso liberou a PF e a PGR, como diz o advogado André Araújo, a criminalizar as condutas de políticos e alargou o campo da arbitragem do judiciário sobre o que poderia ser lícito ou ilícito. A aversão à política nunca mais foi superada.
Distantes do Iluminismo
A corrupção apurada pela Lava-Jato não é uma questão subjetiva, como pretendem os advogados de empresários e políticos condenados. Ela foi real. Outra coisa é seu exercício com meios que remetem à Inquisição no tempo feudal, quando a Igreja se impunha sobre os poderes dos reis insinuando pactos com o maligno, vindo daí as aflições do povo.
O rei pagava indulgências, para ter as graças do Divino, enquanto a queima de bruxas aplacava a ira popular. A Igreja precisava instigar o ódio e inspirar medo para se legitimar e vergar o poder dos reis.
A burocracia justiceira do Estado é a nova Inquisição de um país em busca de salvação. Ainda estamos longe do Iluminismo, até porque nem há consenso sobre as causas de nosso atraso. Mas, como se diz, há coisas certas escritas por linhas tortas. Que haja tal compreensão.