Simone Kafruni, Ingrid Soares
postado em 21/07/2019 07:00
Do lombo dos jegues às garupas de motocicletas, na região mais pobre do país, ou dos engarrafamentos à facilidade dos aplicativos na palma da mão, nos centros urbanos, até as alternativas sustentáveis dos patinetes e veículos elétricos, é inegável a evolução dos transportes nas últimas duas décadas e meia. Com as tecnologias disruptivas, uma revolução está em curso e os passageiros e motoristas começam a enxergar a mobilidade como um serviço capaz de prover o deslocamento da forma mais eficiente e satisfatória. Para a geração do século 21, o carro perdeu o status de sonho de consumo, deixou de ser patrimônio para se tornar uma ferramenta. Neste cenário, novos atores ganham espaço e a indústria automobilística precisa se adaptar.
A monetização da mobilidade, que, por muitos anos, se concentrou na mão das grandes corporações, como montadoras, empresas de transporte coletivo e governo, tomou outro rumo. Entraram na corrida as gigantes de tecnologia, como Apple, Google, pequenas startups, aplicativos de transporte, como Uber e 99, ou a sensação do momento, a Yellow, dos patinetes. Com os carros cada vez mais conectados, as operadoras de telecomunicação também entram na disputa por um lugar no grid.
;A receita está sendo diluída. Mais de 40% dos veículos vendidos são para locadoras. Postos de gasolina discutem criar áreas como local de parada dos carros compartilhados. Há muitas ideias novas na jogada;, diz Andrea Cardoso, diretora executiva da Accenture para indústria automotiva no Brasil. No entender dela, não tem espaço nem receita para todo mundo. ;Quem oferecer o melhor serviço é que vai ter a maior fatia;, afirma.
O comportamento das novas gerações e o avanço da tecnologia estão acelerando as mudanças, destaca Guto Ferreira, presidente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI). ;O carro deixou de ser um amontoado de aço, para ser uma plataforma de serviço. Quem traz mais tecnologia na ponta, vende mais. Mas não é o amortecedor, é o bluetooth, a conexão;, diz. ;Somado a isso, o comportamento dos milleniuns, voltado à sustentabilidade e ao compartilhamento, bate de frente com os modais de transporte tradicionais;, acrescenta. Outras pequenas reinvenções ou adaptações, como o carro elétrico e os patinetes, entraram na rota. ;Além de mudar o perfil do transporte, isso altera radicalmente a modelagem econômica do setor;, explica.
Contradições
Estar preparado para trafegar nesse novo mundo faz toda a diferença na hora de viver do transporte. No sertão nordestino, em São Raimundo Nonato, Piauí, onde, há 25 anos, muitas pessoas ainda se locomoviam no lombo de jegues, ter acesso a aplicativos é fundamental para ganhar clientes e fazer corridas. O mototáxi Nilberto Negreiro, 35 anos, ganha a vida em cima da motocicleta há oito anos. Em 2018, começou a usar o WhatsApp como ferramenta. ;Aumentou meu movimento em 50%. Ficou mais fácil com grupos. Ganhei clientes fixos;, conta. ;Bom para alguns, ruim para outros;, brinca o colega Catarino Dario Pereira dos Santos Neto, 32, que ainda não tem smartphone e perde corridas por conta do celular obsoleto.
Cidade-polo da região mais pobre do Brasil, São Raimundo Nonato tem 34,5 mil habitantes. A frota sobre duas rodas passou de 2.341, em 2006, para mais de 10 mil veículos em 2018, uma moto para cada 3,5 pessoas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Um salto de 328% em 12 anos. Bom para os jegues, que agora circulam livres e, até 1994, antes do Plano Real, eram o principal meio de transporte no sertão. Porém, mais perigoso para os caronas e pilotos.
João Leite, socorrista do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), diz que o principal motivo de morte por acidente em São Raimundo Nonato é queda de moto. Isso porque a população não usa capacete. E, para piorar, trafega com a família toda, quatro ou cinco pessoas em cima de uma motocicleta. ;A gente atende de tudo, derrame, infarto, até briga por bebida, mas nada mata mais do que TCE (traumatismo craniano encefálico). Quem não se mata, fica com sequelas;, lamenta.
O mesmo problema é enfrentado nas grandes cidades com os patinetes elétricos. O número de acidentes se multiplica nas capitais brasileiras, mas, nem isso, tira a atratividade do xodó da mobilidade. Sustentável e ideal para a chamada ;última milha;, aquele percurso final entre o terminal do transporte coletivo ou o estacionamento e a porta do destino, o serviço ganhou fãs e usuários, apesar dos perigos.
Facilidade
A tecnologia acrescentou um novo meio de locomoção na vida do designer gráfico Daniel Souza, 33. Morador do Guará, ele segue de um shopping, no Setor Comercial, para a casa da mãe, na Asa Norte, de patinete. Também aproveita quando sai do trabalho para dar uma volta enquanto espera a esposa buscá-lo. Souza garante que encontrou facilidade ao manusear o equipamento, pois tinha costume, quando criança, de andar de patinetes de alumínio. ;A tecnologia auxilia na mobilidade e facilita a vida. Levei um dia para entender como funcionava, mas depois, peguei a manha. A dica é impulsionar o patinete até acelerar. Faz diferença no dia a dia, porque, nele, a gente anda em pé, não se esforça tanto como na bicicleta. Tem o conforto do acelerador;, diz. ;O único ponto fraco é que deveriam oferecer equipamentos de segurança;, completa.
A camelô Vanusia Alves Rodrigues, 44, moradora de Ceilândia Norte, trabalha próximo ao Hospital de Base do Distrito Federal (HBDF). Ela afirma que utiliza o patinete cerca de três vezes na semana quando precisa se deslocar até a Rodoviária do Plano Piloto para resolver problemas do cotidiano. ;Para não vir de carro, uso patinete. É mais prático. Não tem que esperar o trânsito, não precisa de lugar para estacionar. A tecnologia tem ajudado muito na melhoria de vida e na economia de tempo. Com o patinete elétrico também não me esforço tanto. Só acho que poderia ser mais barato;, opina.
Próximo ao centro do poder, os patinetes também são utilizados por quem trabalha por lá como meio de locomoção. É o caso do estudante Willian Lopes, 17, morador do Itapoã. Ele conta que, ao menos três vezes na semana, utiliza o meio de transporte ao chegar na parada de ônibus da Esplanada. ;Geralmente, isso ocorre quando não consigo pegar o ônibus que passa em frente ao Ministério da Economia. Daí, vou até a parada do outro lado da rua e faço o restante do trajeto no patinete. Por ser elétrico, é mais rápido. Não precisa usar força. Facilita a vida de quem é mais ocupado. Se quiser, também dá para fazer o trajeto pela Esplanada inteira ou ainda subir para a Rodoviária;, destaca.
O advogado Rogério Lima, 38, morador do Jardim Botânico, experimentou o equipamento na Esplanada pela primeira vez. ;Se eu gostar, vai virar prática. O valor não é acessível, mas, com certeza, permite maior circulação, não precisa esperar ônibus nem carro;. Ainda meio tímido, deu as primeiras deslizadas pela ciclovia. Em poucos minutos, pegou o jeito e sumiu pela pista. Ao que parece, também vai passar a ser um usuário fiel.
Meta para reduzir gases veiculares
Para atender ao Acordo de Paris, que estabelece metas de redução de emissões de gases de efeito estufa dos veículos automotores, a Política Nacional de Biocombustíveis (Renovabio) cria a figura dos créditos de descarbonização (CBios), que resultarão na redução de 10,1% na intensidade de carbono da matriz de transporte, segundo a Agência Nacional do Petróleo, Biocombustíveis e Gás Natural (ANP). ;Dada a penetração do carro flex no Brasil, que hoje responde por mais de 70% da frota de veículos leves em circulação e por cerca de 85% da produção nacional, uma opção natural para a eletromobilidade é o veículo híbrido a etanol. Para os veículos pesados de uso rodoviário, estão em andamento estudos em vários países utilizando o gás natural veicular, o biometano ou o green diesel;, informa.