São Paulo ; Ele já esteve com alguns dos chefes de estado das maiores economias do mundo, como Vladimir Putin e Emmanuel Macron, se casou em uma cerimônia no Palácio de Versailles, com decoração inspirada no filme Maria Antonieta, comprou imóveis em alguns dos endereços mais caros do mundo e se tornou ídolo em um país que não costuma reverenciar estrangeiros em cargo de comando, o Japão. Mas desde a última segunda-feira, o brasileiro Carlos Ghosn é apenas mais um no sistema carcerário no país que o projetou como um dos maiores executivos da indústria automobilística de todos os tempos.
Agora, o franco-brasileiro Ghosn segue em uma cela de detenção em Tóquio, privado de todo o luxo do qual usufruía. Segue a rotina de outros encarcerados. Tem contatos limitados com seus advogados e é obrigado a seguir a rigidez de horários que sempre fez questão de exibir nos tempos de executivo.
Um desses encontros foi com o embaixador da França no Japão e com cônsul brasileiro, que falaram rapidamente com Ghosn através de uma janela, segundo a agência de notícias AFP. Agora, o executivo tem direito a 8 horas de sono, três refeições diárias e 30 minutos de exercícios. Nada de bons vinhos, restaurantes estrelados, viagens intercontinentais e, é claro, os salários milionários que recebia como executivo das montadoras Nissan, Renault e Mitsubitshi.
Enquanto Ghosn amarga a nova rotina, encarcerado, as portas para a sua vida como executivo vão se fechando. Tanto a Nissan quanto a Renault convocaram reuniões com seus diretores para definir estratégias de curto prazo e minimizar os impactos, principalmente no mercado de capitais, e manter os planos de seguir com a aliança estratégica das três montadoras. Ontem, Ghosn foi afastado da presidência do conselho da Nissan Motos Co.
Nessa reviravolta, quem tem conseguido espaço é o CEO Hiroto Saikawa, que seria um dos cabeças das investigações internas contra seu colega franco-brasileiro. Nos últimos tempos, Ghosn vinha aumentando a pressão para uma fusão completa da Nissan com o parceiro francês Renault. O plano enfrentava resistência de Saikawa, que já foi apontado como um protegido do ex-todo-poderoso das montadoras.
Sem Ghosn, a aposta é grande quanto ao naufrágio da união completa entre as montadoras. Em parte, o desempenho financeiro da Nissan é um dos problemas, porque, apesar do tamanho que vem ganhando, tem menos influência na aliança. Possui uma participação não-votante de 15% na Renault, que por sua vez detém 43% da Nissan, com direito a voto. A Mitsubishi Motors Corp. foi adicionada à aliança em 2016. O parceiro francês, por sua vez, tem se esforçado para não deixar o projeto fazer água. O ministro francês das Finanças, Bruno Le Maire, disse na quarta-feira que a parceria deve continuar e será aprofundada. Como o maior acionista da Renault, o estado francês está ;totalmente ligado à aliança da Renault e da Nissan;, afirmou.
Mesmo que o executivo prove não ter nenhum envolvimento com a denúncia de declarar ao fisco japonês abaixo do valor real e de usar recursos das companhias em beneficio próprio, os tempos de poder acabaram em 19 de novembro de 2018, quando foi retirado do jato corporativo por ordem dos promotores do país-sede da Nissan e levado para depor sobre as acusações.
Se for condenado, Ghosn, hoje com 64 anos, corre o risco de sair da prisão apenas quando tiver 74 anos. De nada adiantará ter no currículo os bilhões de dólares que conseguiu para as companhias onde trabalhou ao longo da sua carreira ou dos milhões de dólares que embolsou como um dos executivos mais bem remunerados tanto no Japão quanto na França.
À imprensa, o promotor-chefe adjunto do Ministério Público do Distrito de Tóquio, Shin Kukimoto, afirmou que declarar erroneamente a renda ;é uma das categorias mais graves de ofensas;. ;É uma categoria de crime mais pesada que a negociação com informações privilegiadas. Estou ciente de que os olhos e os ouvidos do mundo estão neste caso;.
Ghosn é acusado de subestimar renda de cerca de US $ 44 milhões e de usar indevidamente os fundos da empresa na Nissan. Cai sobre ele a suspeita de infringir a Lei de Instrumentos Financeiros e Câmbio. Além dele, foi preso outro integrante do conselho da montadora, Greg Kelly, acusado de irregularidades em relação ao pagamento de Ghosn.
Parte da imprensa francesa acredita que Ghosn possa ter sido vítima de uma ;puxada de tapete; de seus pares, incomodados com sua projeção como comandante da aliança estratégica entre Nissan, Renault e Mitsubishi Motors, além de presidente executivo da Renault e dos conselhos de administração das três montadoras.
Impossível cogitar que essa conspiração tenha sido arquitetada por colegas despeitados e ambiciosos? Não, mas não deve ser a única razão para o seu debacle. Raphael Galante, da Oikonomia Consultoria Automotiva, acredita que, independentemente do que Ghosn possa ter feito fora da lei, pode ter havido um componente cultural na decisão de expor o escândalo.
;Ele era presidente de uma das maiores empresas japonesas e não era japonês. Isso é algo incomum e esbarra em uma questão cultural. Basta ver que, em outras montadoras asiáticas, normalmente cargos de diretoria têm função espelhada. Se um estrangeiro ocupar um posto, um japonês terá o mesmo posto;, explica o especialista.
Galante não acredita que a prisão de Ghosn interfira nos negócios das três montadoras no Brasil. Segundo o consultor, apesar da relevância do mercado brasileiro para a indústria como um todo, a participação dos resultados locais na receita global não é tão relevante.
- Sem holofotes durante a prisão
Um fato que chama a atenção no caso de Carlos Ghosn foi a publicidade dada pela Nissan ao caso. Executivos do seu porte costumam ser tratados tanto pelas corporações quanto pelas autoridades com alguma discrição. Foi assim com Rupert Stadler, que comandou a Audi e foi preso em junho como parte da investigação sobre o escândalo de fraude em relatórios sobre emissão de poluentes da Volkswagen. Três meses depois, ele estava em casa, depois de pagar fiança. Tratamento semelhante, também na Alemanha, teve Thomas Middelhoff, ex-CEO da empresa de mídia Bertelsmann AG e varejista Arcandor AG, que embolsou fundos corporativos e cumpriu pena de dois anos. Mas não é sempre assim. O fraudador financeiro Bernard Madoff foi exposto em praça pública em 2009. Tratamento semelhante teve Dominique Strauss Kahn, ex-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), que ganhou as manchetes ao aparecer algemado após ser preso por alegações de assédio sexual. Ghosn será representado por Motonari Otsuru, ex-chefe da força-tarefa de investigação especial do Ministério Público do Distrito de Tóquio, informou a NHK hoje, citando pessoas não identificadas conhecidas. Otsuru supervisionou sondas de alto perfil contra o fundador da Livedoor, Takafumi Horie e Kanebo, durante seu mandato como promotor.