Jaqueline Mendes
postado em 24/04/2018 06:00
Nos maiores abatedouros dos frigoríficos da JBS e da BRF no Brasil, não é difícil encontrar funcionários conversando em árabe e vestindo gafirah, gutra ou kandura, os véus mais tradicionais entre os homens muçulmanos. Isso porque existem mais de 500 deles trabalhando no país, dedicados a realizar o halal, uma técnica sagrada de abate, descrita no Alcorão. Apenas carnes preparadas segundo essa cartilha podem ser ingeridas por consumidores da religião islâmica, uma comunidade que soma mais de 1,8 bilhão de pessoas no mundo ; cerca de 25% da população mundial. De acordo com estimativa do instituto americano Pew Research Center, a população de muçulmanos crescerá 73% entre 2010 e 2050, quando alcançará a marca de 2,76 bilhões de pessoas.
Tão impressionante quanto esses números são as estratégias brasileiras diante do imenso mercado. Pelo segundo ano consecutivo, o Brasil se manteve como o maior produtor e exportador mundial de carne halal, à frente dos Estados Unidos e da Austrália. Vale lembrar que o país lidera o ranking geral de carne bovina e ocupa a vice-liderança em frangos. ;O Brasil criou laços fortes com as comunidades islâmicas nas últimas décadas e hoje é um dos países mais abertos e respeitosos às nossas tradições e costumes;, afirma Ali Saifi, diretor executivo da certificadora de alimentos Cdial Halal, principal empresa do segmento no país.
Com o objetivo de atender a um mercado que cresce exponencialmente, diversas empresas estão se preparando para obter a certificação halal, selo que garante a qualidade da carne. Para se ter uma ideia do potencial desse mercado, o Brasil exporta para 57 países islâmicos, sendo 22 países árabes, o que resulta em mais de dois milhões de toneladas de carne por ano. Em cifras, estima-se que a economia halal global atinja a marca de US$ 6,4 trilhões em 2018, o dobro dos US$ 3,2 trilhões contabilizados em 2012, conforme dados levantados pela Autoridade de Padrões e Metrologia dos Emirados Árabes (Esma).
A importância ficou ainda maior após a crise internacional gerada pela Operação Carne Fraca, que resultou no embargo da União Europeia a 20 frigoríficos brasileiros na quinta-feira (19). ;Em um contexto de necessidade de diversificar, os pequenos e médios produtores também começaram a enxergar a importância do Oriente Médio;, diz Tamer Mansour, assessor para assuntos estratégicos da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira. ;O Brasil começou a mudar completamente a visão sobre esses mercados, que se tornaram prioritários.;
Uma prova da importância do mercado islâmico para a indústria brasileira de carnes é o modelo de negócio desenhado pela BRF. A companhia, com a marca One Foods (antes de chamava Sadia Halal), detém 45% do mercado de frango na Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuweit, Qatar e Omã. A distribuição também é feita com estrutura própria e a comercialização inclui diversas marcas, incluindo a própria Sadia.
A empresa é sediada em Dubai, nos Emirados Árabes, e tem cerca de 15 mil funcionários. O fornecimento dos produtos é feito a partir de 10 plantas industriais: oito no Brasil, uma em Abu Dhabi e outra na Malásia. ;Trata-se de um dos mercados mais importantes para a companhia e com um dos maiores potenciais de expansão;, afirma Patricio Rohner, que comanda a operação da BRF no Oriente Médio e Norte na África.
O Brasil não exporta carne halal apenas para o Oriente Médio. A Ásia também tem se destacado nesse quesito. A Coreia do Sul, terceira maior economia do continente e a décima no mundo, foi o quinto maior parceiro comercial do Brasil no ano passado. Atualmente, o Brasil responde por 6% do mercado coreano. ;O mercado halal neste país tem grande potencial. O governo está investindo fortemente neste segmento, principalmente em restaurantes e supermercados halal, devido ao aumento de turistas. No ano passado, em torno de 740 mil muçulmanos visitaram a Coreia do Sul;, afirma Ali.
Outro país que tem levado a sério a questão é a China. O setor halal no país deverá atingir US$ 1,9 trilhão até 2021. A nação mais populosa do mundo tem forte demanda doméstica por alimentos halal, estimada em US$ 20 bilhões, e 26 milhões de consumidores. Embora a população muçulmana na China seja de apenas 2%, a crescente popularidade dos alimentos halal como uma opção saudável também tem impulsionado a demanda.
De acordo com a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), em 2017, as exportações brasileiras para os países árabes somaram pouco mais de 405 mil toneladas, incremento de 6,58% em relação a 2016. Em faturamento, as vendas cresceram 16,13% e fecharam o ano em torno de US$ 1,6 bilhão. Os resultados representam 25% do faturamento total das exportações brasileiras de carne bovina e 26% do total embarcado no ano passado.
Entrevista_Ali Saifi
"A beleza do mercado islâmico é a estabilidade"O que explica o fato de o Brasil ter se tornado o maior produtor de carne halal do mundo?
O Brasil criou laços fortes com as comunidades islâmicas nas últimas décadas, e hoje é um dos países mais abertos e respeitosos às nossas tradições e costumes. Por ser um país multicultural e multirreligioso, os brasileiros dão muita importância e respeito às nossas exigências de abate.
As denúncias de irregularidades sanitárias nos frigoríficos brasileiros não comprometem a produção de carne halal?
Não. Quando grande parte do mundo parou de importar carne brasileira, após as denúncias de irregularidades sanitárias feitas pela Operação Carne Fraca, uma delegação de fiscais do Iraque veio ao Brasil para visitar as instalações de empresas denunciadas. Os iraquianos ficaram impressionados com o que viram. Gostaram tanto que mantiveram as importações e ajudaram a defender o nome do Brasil lá na região. Então, a reputação da indústria brasileira é excelente no mundo islâmico. Somos referência em abate halal.
Qual é a principal diferença entre o mercado islâmico e o restante do mundo?
A beleza do mercado islâmico é a estabilidade. O mercado russo, o mais importante para a indústria brasileira de carnes, abre e fecha o tempo todo. Sob qualquer sinal de alerta, a União Europeia também suspende as importações, como a que está ocorrendo agora com a carne de frango. O mesmo acontece com o Japão e os Estados Unidos. Enquanto isso, os países islâmicos não interrompem os contratos. Quando há alguma dúvida em relação à qualidade, eles vêm para o Brasil e tiram suas próprias conclusões.
Essa relação tende a se fortalecer nos próximos anos?
Com certeza. Os muçulmanos já passaram os católicos em número de pessoas. É fundamental para o Brasil, nesse contexto, estar bem posicionado e bem relacionado. Além disso, os brasileiros e os árabes são muito parecidos na hora de negociar. São flexíveis, mas, ao mesmo tempo, exigem que o prometido seja cumprido. Essa afinidade coloca o brasileiro sempre em vantagem quando os árabes querem fazer negócio.