Maria Francisca e Francisca Portela são duas irmãs de uma família cearense de 13 filhos. A primeira se casou aos 18 anos, fez as malas e se mudou com o marido de Coreaú, no sertão nordestino, para o Planalto Central, em 1987. A segunda, quatro anos mais nova, veio logo depois, em 1990, seguindo as trilhas abertas pela irmã. Ambas começaram a trabalhar como empregadas domésticas, em um tempo em que o país sofria com uma inflação galopante, de mais de 50% ao mês, e o desemprego era alto. De bagagem, além da determinação, apenas o antigo primário de instrução.
Duas décadas depois, Francisca, a mais nova, é pequena empresária do setor de transporte escolar, com três vans. Maria Francisca, que ainda trabalha como doméstica, está concluindo o curso técnico de enfermagem e pretende mudar de ramo. Aos 38 e 42 anos, respectivamente, as duas irmãs já têm imóvel próprio, de três quartos, nas quadras 400 da Asa Norte e da Asa Sul ; fruto de muita consciência e disciplina para poupar ao longo da vida profissional. Compradas em 2007, as moradias dobraram de preço desde então.
No caminho do sucesso das duas irmãs, muitas barreiras. De sol a sol, uma dupla e extenuante jornada de trabalho. Era uma guerra garantir o pão de cada dia dos filhos. Quando chegou a Brasília há 25 anos, Maria Francisca, a mais velha, foi morar na casa do irmão do marido, Raimundo Nonato, no Gama. Um mês depois, mudou-se para um barraco de madeira em uma invasão da região de Águas Claras.
A sorte começou a virar quando o marido, que trabalhava como pedreiro, arrumou uma vaga de zelador na Asa Sul e ela conseguiu emprego em uma das residências do mesmo prédio, onde está até hoje. Foi graças à patroa, a professora aposentada Rutmar Pontes, 55 anos, ao flexibilizar seus horários de trabalho, que ela pôde concluir os estudos e cumprir sua maior missão: acelerar o desenvolvimento da filha, Raquel, hoje com 20 anos, para escapar de uma vida de muitas limitações.
Luta
Quando Raquel nasceu, Maria Francisca percebeu que havia algo errado, mas não quis acreditar. A menina não reagia quando era chamada. Foi na creche, com 1 ano e quatro meses de idade, que as professoras da filha perceberam o problema. A criança foi diagnosticada com deficiência auditiva profunda ; era incapaz de ouvir qualquer som nos dois ouvidos. Depois de muito insistir, a doméstica conseguiu uma vaga no Centro Educacional de Audição e Linguagem Ludovico Pavoni (Ceal).
A vida, já agitada, passou a ser uma correria sem fim. Maria Francisca saía do trabalho na hora do almoço, levava a filha ao Ceal e a buscava no fim do dia. À noite, ela treinava com a menina usando as apostilas da instituição. ;Se outras crianças evoluíram, a minha também vai;, repetia ao ver os sinais de melhora de vários meninos com surdez. O fim de semana era dedicado exclusivamente às tarefas indicadas para estimular Raquel. A menina passou a ficar o dia inteiro no Ceal. Ciente da situação, a patroa permitiu que Maria Francisca passasse a tarde com a filha na instituição. Lá, aproveitou o tempo para retomar os estudos. Fez o supletivo do primeiro grau. Depois, o do segundo grau.
Nessa época, ela levava a filha para casa no fim do dia, treinava os exercícios para fala e depois corria para o trabalho. ;Quantas vezes cheguei à noite e lá estava Maria Francisca na cozinha lavando louça;, lembra a patroa Rutmar, que foi quem a incentivou a fazer o curso técnico de enfermagem. ;Ela tem muito talento para cuidar das pessoas.;
Mas, para dar conta de tudo, Maria Francisca fica até tarde da noite e os fins de semana estudando, sem contar as horas que arruma para dar assistência a necessitados na sua igreja. ;É difícil, são muitas noites sem dormir;, comenta. Duplamente vitoriosa, ela só sorri da vida e não tem dúvidas sobre a profissão que começará a exercer na casa dos 40 anos : ;Sei que vou me dar bem;.
Adoção
A vida da irmã, também Francisca, não foi mais fácil. Chegou à capital federal com 16 anos e ficou morando no emprego. Logo depois, conseguiu uma vaga de auxiliar em uma escola, por indicação da síndica do prédio onde trabalhava. Enquanto isso, já fazia sua poupança e estudava à noite. Entrou na faculdade de administração. Rapidamente, comprou seu primeiro carro, em uma época em que esse bem era um luxo, pois o crédito era caro. Ao ver diariamente as vans levando e buscando as crianças, pensou: ;Vou ter um negócio desses;. Trocou seu veículo por uma Kombi e passou a ;carregar menino;. Desde então, o negócio só prosperou.
Adotou duas crianças de parentes que não as quiseram. A primeira chegou há 13 anos. A outra, Francisco, de 6 anos, lhe foi entregue aos seis meses à beira da morte, com má formação do canal urinário e epilepsia. Sua barriguinha é inchada e muito vulnerável, pois ele não tem músculos suficientes para proteger os órgãos. Francisco precisará passar por nova cirurgia. E tomará a vida toda pelo menos duas doses de remédios por dia para controlar as convulsões.
Há dois anos, Francisca teve uma menina, Maria, com um ex-namorado do Ceará, o que só aumentou as responsabilidades. Mas está longe de reclamar da rotina: acorda por volta das 5 da manhã, leva crianças para escola, busca, dá almoço aos filhos, faz compras e dorme depois das 23h. Feliz, fala com satisfação: ;Gosto da minha vida. Sou uma vencedora;.
Craque em leitura labial
Ainda na adolescência, a filha de Maria Francisca, Raquel, já dava aulas de Libras (língua brasileira de sinais) para outros portadores de deficiência auditiva. Craque em leitura labial, antes de terminar o segundo grau, tinha passado no vestibular de educação física no UniCeub, onde está cursando, pela manhã, o terceiro período. À tarde, a jovem trabalha no Tribunal Regional Federal da 2; Região.
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