Durante quase 20 anos, de segunda a sábado, José Arnaldo Vargas, 49 anos, trabalhou como instalador de acessórios numa concessionária de veículos em Brasília. Nunca sofrera qualquer acidente. Chegou a integrar a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa) da empresa por dois anos. Em 9 de fevereiro de 2007, ele foi enterrado com o veredicto de culpado. José Arnaldo morreu ao ser atingido pelo veículo que consertava junto com um colega, ao despencar do elevador eletromecânico que o sustentava no alto.
Os peritos da Polícia Civil concluíram que o equipamento funcionava regularmente e que a culpa foi de Vargas, que não verificou, ;no início do içamento;, se o veículo estava bem posicionado no elevador. Não foi considerada, na perícia, a técnica do trabalho, que implica forçar o veículo para baixo ao colocar as peças, o que Vargas e o outro funcionário fizeram naquele dia. A Justiça do Trabalho acolheu a defesa da concessionária Disbrave com base no laudo da Polícia Civil, atribuindo ;culpa exclusiva; à vítima, e negou a indenização por danos morais pedida pela família.
A busca da culpa do funcionário pelas tragédias ainda é a prática na análise dos acidentes, e é aceita pela Justiça, mas está ultrapassada do ponto de vista do conhecimento científico, diz o médico do trabalho e doutor em saúde pública Ildeberto Muniz de Almeida, professor da Universidade do Estado de São Paulo (Inesp). ;Essa visão tradicional, que centra a explicação do acidente na pessoa da vítima, é individualizadora, reducionista;, denuncia.
[SAIBAMAIS]O auditor-fiscal do trabalho na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Fortaleza Mauro Khouri critica esse modelo de análise centrado na noção do ato inseguro. ;Um grande número de acidentes está resumido nisso: de que o funcionário não prestou atenção. Mas não se pode estabelecer um sistema de segurança baseado na atenção da pessoa. Tem que haver outras medidas de proteção coletiva;, alerta.
Controle
Para o médico e professor da Unesp, essa visão tradicional inibe a prevenção, porque a origem do problema permanece. Pressupõe que o trabalhador faz o que quer, que poderia fazer de outro jeito e que tem o controle absoluto da situação, dos meios disponíveis, dos materiais necessários, o que não é verdade. ;Isso significa pensar também que as condições do ambiente em que se dá o trabalho nunca mudam. Mas elas são variáveis, conforme a época, a quantidade de pedidos e a demanda, a disponibilidade de material, entre outros fatores;, destaca Almeida. Ele afirma que não é mais possível encontrar casos de acidentes explicados pela culpa exclusiva da vítima.
Na maioria das vezes, alerta Almeida, é graças ao conhecimento que o trabalhador tem para lidar com essas mudanças ; a matéria-prima que não está agarrando no equipamento, a máquina que não funciona direito ; que ele consegue identificar o problema, corrigi-lo e evitar o acidente. ;Ninguém vê, ninguém valoriza o não-acidente;, diz. ;O certo é que a gestão de segurança deveria explicar as razões pelas quais o trabalhador fez a tarefa sempre com sucesso e não deu certo daquela vez, no lugar de julgá-lo e culpá-lo;, afirma o médico.
Em sua avaliação, na maior parte das falhas, estão constrangimentos na organização do trabalho, a necessidade de execução da tarefa em prazo curto ou o surgimento de um problema novo em dado momento, no qual o trabalhador perde a compreensão do que está acontecendo. Para o especialista, no caso da morte de Vargas, a pergunta que deveriam fazer é: ;Por que não aconteceu antes?;
Khouri explica que os servidores do Ministério do Trabalho estão orientados a investigar o acidente em todos os seus aspectos e não apenas se a máquina está funcionando ou não. ;É preciso descobrir o que contribuiu para o acidente acontecer. Compreender que há fatores diversos, imediatos, intermediários, subjacentes e até latentes, que explicam o ocorrido, que envolvem a organização da empresa, o gerenciamento e a gestão de pessoal, de materiais, de segurança, entre outros pontos.
Ele fez a feijoada
Quase cinco anos depois da morte do mecânico José Arnaldo Vargas, seu irmão Francisco de Assis ainda não se conforma com a perda daquele que tanto ajudava a família. ;Eu estive na concessionária três dias antes do acidente que o matou e comentei com ele que o elevador no qual trabalhava era muito inseguro, pois não havia travas para as rodas nas laterais das sapatas que amparam o veículo. Ele disse que não era para eu me preocupar, que estava acostumado;, relembra.
Três dias depois, a família do mecânico estava destroçada. Mineiro de Carmópolis, José Arnaldo, o terceiro de nove irmãos, mudou-se primeiro para a Brasília, no início da década de 80, com a mulher e o filho recém-nascido Augusto, hoje com 30 anos. Depois foi a vez dos outros irmãos, que moraram com o casal até se ajeitarem na capital. A mãe, hoje com 78 anos, veio em seguida.
A família unida, acostumada a almoçar sempre junta nos fins de semana, com filhos, sobrinhos, netos e namoradas, até hoje tenta juntar os cacos. José Arnaldo morreu numa quinta-feira. Quatro dias antes, no domingo mais uma vez a família toda se reuniu e foi ele quem fez a feijoada. ;Serviu todo mundo. Ele mesmo lavou a louça. Foi uma despedida;, relembra a filha Kelliane, 28.
A mulher Vera Lúcia ainda não conseguiu se conformar e levar a vida adiante. Ela e José Arnaldo já tinham perdido o terceiro filho de 2 anos com leucemia. ;É doloroso receber telefonema perguntando por ele e ter que dizer que ele faleceu. Não há mais Natal, não há mais ano-novo;, chora ela, que tomou antidepressivos durante quase cinco anos. Vera Lúcia só largou o remédio há algumas semanas.
Há 21 anos, o eletricista Milton Ribeiro Marcelino sobreviveu a um grave acidente de trabalho, mas, desde então, sua vida é sobre uma cadeira de rodas. Ele perdeu o braço esquerdo e as duas pernas depois de ser atingido por um cabo de alta tensão de um poste da Cemig, a companhia de energia de Minas. Hoje, com 44 anos, sobrevive com a aposentadoria por invalidez de um salário mínimo. É ele quem sustenta a mulher e o filho de 8 anos. (Colaborou Frederico Bottrel)