;Tá vendo aquele edifício, moço? Ajudei a levantar. Foi um tempo de aflição, eram quatro condução, duas pra ir...;. Em 20 de janeiro deste ano, a música não terminou para o servente de obra José Moraes Freitas, de 54 anos. Ele não pegou as duas conduções de volta para casa. Quatro horas depois que o ônibus o deixou próximo à obra do novo prédio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tocada pela construtora Via Engenharia, a plataforma onde ele trabalhava a sete metros de altura cedeu. O colega que estava junto ainda tentou agarrá-lo pela mão, mas não aguentou. E José caiu. Levado com vida ao hospital, morreu horas depois, sem atendimento, à espera de uma vaga na UTI.
Dez meses depois, sentada no sofá da casa humilde e silenciosa em Águas Lindas de Goiás, cabeça baixa, Marta Ana, 43, viúva de José, tem o olhar fixo num canto da sala da casa, que ele comprou ainda solteiro. Ela está ficando cega. Só enxerga vultos de objetos e das pessoas. À rua, não pode sair sozinha. ;A vida virou do avesso;, diz, inconformada e incrédula em muitos momentos. Os dois filhos do casal, Oziel, 11, e Micael, 10, são muito pequenos para entender a falta que o pai fará em suas vidas. Choram escondidos à noite, na cama, de saudade. Não sabem que o pai virou estatística de acidentes de trabalho fatais no Brasil.
A cada dia, quase 2 mil trabalhadores como Freitas se acidentam defendendo o pão da família. Desses, 43 não retornam mais ao batente, ou porque ficaram incapacitados para sempre, ou porque morreram. Dados divulgados pelo Ministério da Previdência Social, o órgão que dispõe de informações mais confiáveis sobre essa faceta dramática do trabalho brasileiro, trazem uma boa e uma má notícia. A quantidade de acidentes em geral vem em queda desde 2008, quando houve 755.980 ocorrências. Em 2010, foram 701.496 ; 7% menos. Mas os casos fatais, que tinham caído entre 2008 e 2009, voltaram a aumentar no ano passado: 2.712 pessoas ; em média, sete por dia ; perderam a vida trabalhando, 152 a mais que nos 12 meses anteriores, quando o total de mortes foi de 2.560.
Também têm crescido os acidentes durante o trajeto de ida para o serviço e de volta para a casa, conforme os indicadores fornecidos pelas empresas por meio da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), que é obrigatória. Em 2008, foram 88.742 e, em 2010, 94.789, 7% a mais. A Previdência, no entanto, contabiliza em torno de 200 mil por ano os casos que não são comunicados, mas são identificados e classificados como acidente pelos médicos peritos e funcionários do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) quando o segurado pede o benefício. A falha é que o órgão não os classifica por motivos.
Indenizações
O número das vítimas que se machucam e morrem enquanto trabalham, porém, é bem maior. Os dados da Previdência só anotam os casos de empregados registrados ou que venham a comprovar o vínculo empregatício, que geraram o pagamento de algum benefício decorrente de acidente, como auxílio-doença, auxílio-acidente, auxílio-suplementar, aposentadoria por invalidez e pensão por morte. Há muitas ocorrências que não são comunicadas, pois os empregados ficam afastados temporariamente com salário pago pelas firmas, sem recebimento de benefício previdenciário.
Ficam de fora também das estatísticas os acidentes envolvendo os demais trabalhadores brasileiros ; autônomos, profissionais liberais, servidores públicos, empregados domésticos e todos aqueles que atuam na informalidade nas cidades e nas lavouras. Eles representam 60% da força de trabalho. O drama fica maior ao se constatar que boa parte desses profissionais exerce suas obrigações com muito menos segurança que os empregados formais, para os quais o governo exige cumprimento às normas mínimas.
Mesmo entre os trabalhadores com carteira assinada, é comum o desrespeito às poucas regras existentes. Quando caiu da plataforma que cedeu em janeiro deste ano, o operário José Freitas não estava com o cinto de segurança obrigatório do tipo paraquedista, conforme apontou o laudo pericial da Polícia Civil. Em casos assim, a morte é praticamente certa.
Pressão alta
José foi substituído logo por outro operário na obra. A 54 quilômetros dali, no entanto, o destino de uma mãe e seus filhos era revisto, para pior. Os menores Oziel e Micael tiveram de mudar de escola, pois chegavam chorando por causa dos comentários dos coleguinhas sobre o fato de o pai deles ;ter despencado do alto;. Desde a morte de José, as notas do mais velho pioraram. As de Micael já eram baixas, pois ele tem dificuldade de fala e, por isso, aprende pouco nas aulas.
A mãe começou a tomar remédios para pressão alta, e as noites de insônia passaram a ser comuns. Com a visão sumindo, e sem o companheiro que fazia os reparos na casa e cuidava da organização das contas, das compras e dos filhos, Marta teme o futuro incerto. ;Não consigo mais dormir direito. A preocupação passou a ser minha companheira.;
Solteirão, tímido e reservado, José conheceu Marta, servente de escola, e se apaixonou por ela 11 anos atrás. Criou como seu o garoto Thiago, então com 6 anos, o filho que Marta já tinha ; hoje com 18 anos. Não sem muita razão, os dois meninos nascidos quando quarentão eram a grande alegria de José. Pai amoroso, para onde ia, nos dias de folga, levava as crianças consigo. Jamais imaginou deixá-las tão cedo e tão necessitadas da sua presença. ;Ele sonhava em vê-los formados;, relembra ela, que recebe pensão de R$ 800 do
INSS deixada pelo marido. Agora, parte do futuro de Oziel e Micael repousa em um gabinete da Justiça do Trabalho em Brasília, onde corre a ação pedindo a indenização pela morte do pai.