O sol ainda nem raiou e Hélio Claudino da Silva, 62 anos, já está com o ouvido colado na estrada de ferro que passa a poucos metros da porta de sua casa, em Luziânia (GO). Representante da terceira geração de uma família de ferroviários, ele assumiu o papel de fiscal voluntário do trecho operado pela Ferrovia Centro-Atlântica (FCA), tomado pelo mato e cercado de moradores pobres. Ao contrário do grande movimento de décadas atrás, hoje só passam cinco trens por dia pela linha de 70 quilômetros entre Brasília e o município goiano, às margens da BR-040. A maioria, de madrugada. ;Sofro com a degradação da via. Os trilhos estão enferrujados e 70% dos dormentes estão podres;, lamenta, saudoso do tempo em que embarcavam e desembarcavam centenas de pessoas no pátio vizinho da sua moradia.
Totalmente depredada, a Estação Jardim Ingá é abrigo para assaltantes e drogados. Até os anos 1980, o local, onde ainda funciona um decadente centro de manutenção, agora da concessionária FCA, era importante entreposto de gado e gente. Desde a privatização da Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA), em 1996, a estrada minguou e passou a transportar cargas de meia dúzia de agroindústrias, encabeçadas pela Bunge Alimentos. Aposentado da RFFSA desde o ano em que o patrimônio da estatal foi cedido a investidores privados, Claudino conta que fazia parte do grupo criado em 1969 para fazer reparos na linha da então malha Centro-Oeste da rede. ;Éramos 118 homens e, hoje, não chegam a 12;, emenda.
R$ 40 bilhões
O descaso descrito pelo goiano se repete com cores mais dramáticas em centenas de outras localidades no interior do país, ao longo dos quase 19 mil quilômetros concedidos a 10 operadores privados e tidos pela própria Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) como abandonados ou subaproveitados. O Ministério Público Federal (MPF) calcula que essas ;sobras; de trechos constituem um patrimônio de R$ 40 bilhões, consumido pela ação do tempo, por permanentes furtos e invasões. Para piorar, a corrupção no Ministério dos Transportes, que levou à queda de sua cúpula na semana passada, explica negligências e trava investimentos.
;Esse quadro só existe em razão da precariedade dos contratos de concessão, que transferiram 28 mil quilômetros sem deixar clara a responsabilidade dos concessionários em relação aos trechos não aproveitados;, explica Bernardo Figueiredo, diretor-geral da ANTT. Ele informa que o órgão regulador vai baixar nos próximos dias duas resoluções para licitar linhas não usadas ou fazê-las voltar à custódia da União. ;Curtas distâncias de ferrovia são, quase sempre, economicamente inviáveis. Mas pode haver interessados em explorar ramais para transporte local de cargas ou para fins turísticos, com trens históricos.; Outra alternativa é transformar as linhas em rodovias. Na sua avaliação, só o modal ferroviário de alta velocidade concorre no mercado de passageiros com o rodoviário e o aéreo.
Rodrigo Vilaça, diretor executivo da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), que representa as concessionárias, rebate acusações de desleixo feitas pelo MPF e duvida que trechos abandonados deem lucro. ;A malha já estava muito prejudicada quando assumimos. Se não fosse o processo de concessão, talvez não restasse mais nada;, comenta. A ANTF propôs ao governo um plano para investir R$ 15 bilhões em cinco anos para solucionar os gargalos dos trechos usados, em troca de renovação ou prorrogação dos contratos de concessão, que vencem a partir de 2026. ;A aplicação desses recursos próprios na eficiência das ferrovias só depende de novo marco regulatório.;
Moradores
Na avaliação de Vilaça, as dificuldades do setor refletem a falta de planejamento e a dificuldade para tomar decisões. Como exemplo, ele menciona o conflito envolvendo mais de 200 mil famílias que residem às margens dos trilhos. Apenas algumas negociações, mediadas por prefeituras e que levaram de dois a quatro anos, conseguiram remover os moradores irregulares para outros locais de programas habitacionais. ;Além de não termos poder de polícia, estamos tratando de algo sério: a vida das pessoas;, resume. Outro problema a ser encarado é a defasagem técnica da mão de obra: ;Operamos ferrovias dos séculos 19 e 21 e décadas sem investimento na formação de pessoal;.
O Plano Nacional de Logística de Transportes (PNLT) prevê ampliação da malha para 52 mil quilômetros até 2025 com a construção de 17 ferrovias, das quais sete estão em execução e outras 10, em estudo. A extensão final da malha pode, contudo, sofrer ajustes, caso trechos indesejados sejam definitivamente excluídos do resto. Os projetos estão focados na melhora da integração da rede atual com rodovias e portos, em favor do escoamento da produção de grãos e do comércio exterior. Em paralelo, outros planos são colocados em movimento, como o Trem de Alta Velocidade (TAV), que ligará Campinas (SP), São Paulo e Rio de Janeiro, com o custo estimado pelo mercado em R$ 55 bilhões.
Em março, o governador do DF, Agnelo Queiroz (PT), pilotou um pequeno veículo da FCA para lançar o projeto de retomada do transporte ferroviário de passageiros entre Brasília e Luziânia, encerrado em 1984. ;Essa conversa de trem metropolitano vai e volta há 25 anos. Duvido que sairá do discurso;, desconfia o experiente Claudino, que coleciona histórias e objetos de uma época mais auspiciosa. Ele conta que foi cumprimentado por governadores e militares, em eventos onde promessas de dias melhores para aquela linha estreita e de curto trajeto foram anunciados. Prefere manter a rotina de denunciar acidentes, depredações e roubos dos equipamentos e peças que ainda restam.