Não bastassem o péssimo atendimento dos hospitais públicos e o descaso dos planos privados de saúde, os brasileiros terão de encarar um movimento que poderá lhes custar caro: a falta de concorrência entre hospitais particulares, fabricantes de medicamentos, laboratórios de análises clínicas e redes de farmácias. Nos próximos 20 anos, quando se verá um rápido processo de envelhecimento da população, haverá poucos e grandes conglomerados concentrando a prestação de serviços, deixando os consumidores sem muitas alternativas, o que resultará em custos maiores.
Tamanha concentração exigirá do governo de Dilma Rousseff, que tomará posse no sábado, uma atuação mais efetiva em favor do elo mais fraco dessa corrente: a população. O primeiro passo será exigir que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), hoje totalmente loteada por políticos e dominada pelas operadoras de planos de saúde, realmente olhe para os consumidores e não apenas para o equilíbrio econômico-financeiro das empresas. Numa etapa seguinte, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), ligado ao Ministério da Justiça, terá que impor limites para o encolhimento da competição.
Temendo pelo pior, a funcionária pública Nair Ribeiro, 58 anos, exige uma ação rigorosa da presidente eleita. Ela conta que está sendo obrigada a esperar um longo período para ser atendida pelo médico de sua escolha, apesar de pagar R$ 450 por mês pelo plano de saúde. ;A demora no atendimento pelo convênio é grande. Não deveria ser assim, já que custa tão caro;, ressalta. A reclamação só não é mais enfática porque recorrer ao sistema público é ainda pior. ;Já estive na emergência do Hospital de Base em busca de um oftalmologista e foi muito difícil ser atendida. Até chegar ao médico é muito complicado;, relata.
Filas longas
O fato é que para manter a rentabilidade dos planos, as administradoras achatam os preços das consultas pagas aos médicos, aos laboratórios e às empresas de medicina diagnóstica. Cortam custos, mas cobram cada vez mais de quem contrata os convênios. Para compensar a baixa remuneração, médicos e laboratórios atendem grande número de pacientes, trabalhando em escala, o que prejudica o atendimento, gerando filas, longas esperas, retornos demorados e insatisfação geral. Já há quem acredite que os serviços dos planos estão se nivelando por baixo, se aproximando perigosamente da péssima qualidade do atendimento oferecido pelos hospitais públicos e postos de saúde.
Mas o que parece bastante dramático hoje pode entrar em colapso na medida em que cada vez mais pessoas ascendem para as classes média e tendem a consumirem planos de saúde. ;Pesquisas mostram que ter plano de saúde é o segundo maior objeto de desejo dos brasileiros. O primeiro é ter a casa própria;, conta Fernando Fernandes, diretor da consultoria em saúde MedInsight Evidências. ;O importante é que os planos se preparem adequadamente para fazer frente a essa demanda, segmentando os produtos e oferecendo uma rede de atendimento diferenciada, de acordo com o valor da mensalidade;, acrescenta.
Fernandes afirma que, nos últimos, anos vários planos populares foram lançados. ;Nos últimos dez anos, o setor privado cresceu mais de 40%, puxado pela expansão das classes C e D;, diz. Para o consultor, a tendência é que as operadoras foquem em determinados públicos de forma a prestar um serviço mais diferenciado e a atender as expectativas de seus clientes. ;O setor deve se segmentar. Essa é a tendência;.
Indefensável
Na avaliação do presidente da Consultoria LatinLink, Ruy Coutinho, o processo de concentração no setor de saúde é irreversível, não apenas no Brasil, mas em quase todo o mundo. ;Veremos as operadores de planos de saúde investindo não apenas na prestação do atendimento médico, mas também em hospitais e empresas de medicina diagnóstica. Também veremos administradora comprando administradora da planos;, frisa. ;Como esse movimento está acontecendo em um setor muito sensível para a população, o processo demandará uma atenção toda especial do governo;, ressalta.
Pelos cálculos de Coutinho, até 2015, 40% do mercado de medicina diagnóstica ; laboratórios de análises clínicas, diagnósticos por imagem, medicina nuclear e robótica ; estarão nas mãos de 60 grupos apenas. Hoje, existem 19 mil empresas atuando nesse segmento. No caso do setor farmacêutico, no mesmo período, as cinco maiores redes deverão responder por até 50% do mercado. ;A tendência é de constituição de grandes grupos, por meio de uma série de fusões e aquisições;, afirma.
;Acho que ainda não está havendo um processo de concentração, e sim de consolidação do setor, que ainda é muito pulverizado. Esse movimento não significa redução da concorrência;, assegura José Cechin, diretor executivo da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde). Para ele, as fusões e aquisições na área estão acontecendo para fazer frente ao aumento de custos enfrentados pelos planos de saúde. De acordo com a ANS, as despesas administrativas variam de R$ 14 por pessoa por mês, no caso dos grandes planos, e até R$ 30 por pessoa por mês entre as operadoras de menor porte. ;Só com base nessa informação é possível perceber que ter escala é muito importante nesse setor;, diz Cechin.
Gasto duplo
Outra informação importante está nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O levantamento mostra que, entre 2003 e 2008, a quantidade de pessoas com planos de saúde cresceu 14%. Em igual período, a renda subiu 17,5% e as mensalidades dos convênios tiveram alta de 23%. Quer dizer: os serviços foram reajustados além do poder de compra dos trabalhadores.
Não à toa, a carestia está expulsando consumidores do setor. A coordenadora de eventos Kelly Araújo Correia, 31 anos, conta que já teve plano de saúde. Hoje, ela paga por suas consultas. ;Já tive convênio mais de uma vez, mas sempre encontrei problemas, pois, se queria um bom médico e ele não aceitava o meu plano, tinha de pagar pelas consultas. Gastava duas vezes. Desse jeito, fica difícil tratar da saúde e prevenir doenças;, reclama. ;O setor de saúde incorpora cada vez mais novas tecnologias e utiliza equipamentos sofisticados, o que torna caro o atendimento. Por isso ter escala é essencial;, conclui Ruy Coutinho.
Falta de transparência
; A indignação de quem precisa dos serviços de saúde no Brasil não comove as autoridades. Os responsáveis pelos hospitais públicos são incapazes de implantar soluções que melhorem as condições de atendimento. Não se preocupam nem em prestar contas do que fazem. Dos 5.565 municípios, apenas 2.897 tiveram os relatórios de gestão de 2009 aprovados, o que representa 52% das cidades do país. Bem menos do que os 4.113 de 2008 e dos 3.376 de 2007. Na Região Centro-Oeste, dos 486 municípios, só 280 (58%) tiveram o documento sancionado ; em 2008, 251 foram aprovados, um recuo grande em relação aos 314 de 2007. Procurado pelo Correio, o Ministério da Saúde não se manifestou. As agruras não são relacionadas à falta de recursos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os gastos com saúde atingiram 8,4% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2007, mesmo volume que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico estima para a média dos países ricos.