Com o crédito farto e a disposição cada vez maior da população de realizar o sonho da casa própria, as empresas do setor imobiliário não estão medindo esforços para seduzir a clientela. O vale-tudo começa já na negociação do sinal obrigatório para garantir a casa ou o apartamento. Se até um ano atrás era um tabu para as construtoras facilitar o pagamento da entrada do financiamento, equivalente, em média, a 10% do valor do imóvel, agora, esse percentual não só foi reduzido à metade, como é possível até mesmo dividi-lo no cartão de crédito, pagar em seis vezes no cheque ou quitá-lo com um carro. "Trata-se de um processo irreversível. Essas facilidades são frutos da estabilidade da economia e das perspectivas positivas para o setor da construção", diz João Henrique Baeta, gerente de vendas da Paulo Baeta Empreendimentos Imobiliários.
Baeta conta que as facilidades são concedidas, principalmente, nos empreendimentos ainda na planta. É que as construtoras, especialmente as que lançaram ações em bolsa de valores, estão supercapitalizadas. Ou seja, já não dependem tanto dos primeiros desembolsos dos compradores para começar às obras. "Do início da construção até a entrega das chaves, as empresas recebem de seus clientes entre 35% e 40% do valor dos imóveis. E, nesse meio tempo, ainda contam com o reforço das linhas de crédito disponibilizadas pelos bancos", afirma. O resultado disso é que, em vez de dois anos para concluir a venda de um prédio inteiro, as empresas estão liquidando o negócio em, no máximo, seis meses.
Para Eduardo Aroeira, diretor-executivo da Apex Engenharia, é entre a população de baixa renda que se veem as maiores facilidades. "O sinal varia entre R$ 400 e R$ 6 mil, aí incluídas as comissões dos corretores, tudo dividido em até seis vezes", explica. Ele ressalta que, com as novas linhas de crédito disponibilizadas por meio do programa Minha Casa, Minha Vida, os financiamentos saem na assinatura do contrato e não depois da entrega das chaves, como é tradicional.
Desde o início do negócio, o pagamento é feito ao banco e não à construtora, reduzindo o risco da operação. Os gastos com a escritura do imóvel em cartório e com o Imposto de Transferência de Bens Imóveis (ITBI) são incluídos no empréstimo bancário. Para quem vai comprar um imóvel de R$ 115 mil, só com esses dois itens seria necessário pagar, de imediato, quase R$ 3 mil. "É por isso que os empreendimentos para a baixa renda estão bombando. Nosso mais recente lançamento, com 270 apartamentos, foi vendido em menos de dois meses", justifica Aroeira.
Sem juros
Percebendo que boa parte de seus clientes tinha dificuldade em quitar o sinal, a Cury Construtora decidiu inovar: dividir a entrada em até 10 vezes sem juros no cartão de crédito. "Lançamos o primeiro empreendimento e expandimos a ideia para mais quatro", comemora Fábio Cury, presidente da empresa. Ainda na planta, os apartamentos de dois quartos em Guarulhos, na região da Grande São Paulo, foram vendidos em tempo recorde. Segundo Cury, a facilidade motivou o fechamento de pelo menos 300 novos negócios. "Antes do cartão, a gente parcelava o sinal em quatro ou cinco vezes. Tínhamos que pegar cheque pré-datado, mandar boleto e isso tinha alguma inadimplência. Pensamos: por que não o cartão de crédito?", completa o empresário.
Além de aceitar o cartão no ato da compra do imóvel, a construtora também utiliza como um dos critérios para avaliação de renda o limite de crédito concedido pelo banco ao cliente. Cury rechaça os riscos de que a ferramenta estimule no Brasil a formação de uma bolha imobiliária, como ocorreu nos Estados Unidos. "Essa é a grande mudança do Brasil. O imóvel só vai decolar para a baixa renda se vendermos crédito. Sem os exageros americanos. O importante em uma economia estável é que o comprador tenha estabilidade no emprego e que tenha uma entrada mensal nos próximos anos. No mundo inteiro é assim e está na hora de o Brasil também ser assim", reforça.
O próximo passo da construtora especializada na classe C é oferecer benefícios para quem quiser lançar mão do dinheiro de plástico para ficar mais perto da casa própria. A Cury espera fechar em breve uma parceria com bancos ou bandeiras de cartão de crédito para lançar um programa de pontos. A exemplo do que as companhias aéreas já fazem, a construtora quer bonificar seus clientes que juntarem mais pontos. "Quem pagar com cartão vai poder retirar móveis em lojas de departamentos", diz Fábio Cury.
Baixa renda
Em 2008, o deficit habitacional no país chegou a 5,5 milhões de moradias. O problema mais grave está concentrado nas famílias com renda de até três salários mínimos. Nos últimos cinco anos, o governo abriu linhas especiais e ampliou o acesso ao crédito para os brasileiros de baixa renda. Bancos públicos e privados reduziram taxas de juros e ajudaram a consolidar o
boom imobiliário.
No Distrito Federal, o mercado imobiliário vê com ressalvas o vale-tudo da casa própria. Extremamente conservador, João Carlos de Almeida, diretor financeiro da construtora JC Gontijo, prefere não avançar o sinal. "Continuamos exigindo um sinal entre 10% e 12% do valor do imóvel e que essa parcela seja paga de uma única vez", ressalta. Com isso, acrescenta ele, tem-se a certeza de que, no meio do caminho não haverá surpresas desagradáveis, como o atraso no pagamento das parcelas. "Um cliente que pode pagar à vista a entrada do valor do imóvel tem consistência financeira para não sofrer revés ao longo do processo de quitação da casa própria", assinala.
Wildemir Demartini, diretor-presidente da Lopes Royal, diz que a compra de um imóvel exige uma reserva financeira mínima e avalia que o parcelamento do sinal no cartão de crédito, por exemplo, inspira cuidados. "Se o comprador precisar dividir, é uma indicação forte de que ele poderá ter dificuldades de pagar o bem no futuro", completa. Para ele, a novidade não chegará a Brasília tão cedo. "A renda aqui é alta. Acho difícil uma modalidade dessas chegar", afirma.
A corrida desenfreada pelo imóvel próprio não assusta a economista Luíza Rodrigues, do Banco Santander. "Não se trata de uma bolha. Temos de lembrar que, durante muitos anos, os brasileiros ficaram sem acesso a crédito imobiliário. O pouco que existia era muito caro. Hoje, além de as condições macroeconômicas serem muito favoráveis - inflação sob controle e juros em baixa -, os bancos e as construtoras têm instrumentos legais para reaver os imóveis rapidamente em caso de inadimplência", diz a especialista em crédito.
Craque na área de financiamento, o presidente da Partner Conhecimento, Álvaro Musa, ex-presidente da Financeira Fininvest, classifica como avanço as facilidades criadas pelas construtoras e bancos para o financiamento. Mas faz uma ressalva: "Comprometer os limites do cartão de crédito com o pagamento de prestações de imóveis pode não ser bom negócio. Esse é o tipo de linha de crédito que deve ficar disponível para despesas do dia a dia porque o não pagamento em dia das faturas dos cartões são punidos com juros elevadíssimos".
No entender do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, o crédito farto é bom para o crescimento da economia. Mas é preciso cautela por parte do tomador e de quem empresta. Não foi à toa, portanto, que o BC reforçou a fiscalização sobre o sistema financeiro. "Tudo o que não queremos é uma bolha de crédito", avisa Meirelles. Até outubro, os bancos tinham aplicado R$ 85,2 bilhões em financiamentos habitacionais - um crescimento de 34,8% no ano.