O Brasil registrará, em 2010, o maior rombo nas contas externas da história: US$ 40 bilhões ; o recorde é de 1998, com US$ 33,4 bilhões, ano em que o país enfrentou grande fuga de recursos devido aos estragos provocados pela crise da Rússia. Foi o que avisou ontem o Banco Central ao detalhar o impacto da forte retomada do crescimento econômico nas transações correntes do país com o exterior. Até então, o BC trabalhava com uma estimativa de deficit de US$ 29 bilhões, considerado incompatível com um Produto Interno Bruto (PIB) avançando a um ritmo superior a 5%. Em relação a 2009 (US$ 22 bilhões), o buraco das contas externas do ano que vem quase dobrará.
A forte deterioração das transações correntes será comandada por três frentes: 1) redução do saldo da balança comercial, devido ao aumento das importações, conforme mostrou ontem o Correio; 2) incremento das remessas de lucros e dividendos por empresas internacionais instaladas no país; 3) maior disposição dos brasileiros em viajar para o exterior. Juntas, essas três contas são responsáveis por 92% (US$ 10,2 bilhões) do aumento nas estimativas do BC. ;Isso é o que chamamos de fatura do crescimento;, disse o economista-chefe do Banco Schahin, Sílvio Campos Neto.
Pelas contas do BC, em vez de US$ 19 bilhões, o saldo da balança comercial de 2010 ficará em US$ 15 bilhões. Já as projeções para as remessas de lucros e dividendos saltaram de US$ 26 bilhões para US$ 30,2 bilhões. No caso da conta viagem, o deficit projetado passou de US$ 5 bilhões para US$ 7 bilhões (leia mais nesta página). ;Todas as revisões contemplam uma economia mais aquecida no ano que vem;, afirmou o chefe do Departamento Econômico do BC, Altamir Lopes.
Remessas
;As importações vão aumentar para atender a demanda e os investimentos. Haverá mais gastos com transportes e aluguel de máquinas de equipamentos;, ressaltou Altamir. Além disso, emendou ele, como terão resultados melhores, as multinacionais remeterão mais recursos para as suas sedes. E, com o câmbio favorável e a renda em alta, os brasileiros tendem a viajar mais para fora do país.
Na avaliação do economista do BC, a piora dos números não deve ser vista com preocupação. ;O deficit será mais do que compensado pela entrada de investimentos no Brasil;, assinalou. A estimativa de investimentos diretos (IED), voltados para o aumento da produção, subiu de US$ 38 bilhões para US$ 45 bilhões em 2010. O BC prevê ainda que os estrangeiros deixarão no país, no ano que vem, um saldo positivo de US$ 25 bilhões em aplicações em títulos públicos e ações. Essa conta, por sinal, deverá fechar 2009 com superavit de US$ 46,5 bilhões ; valor sem precedentes em um ano desde o início da série histórica do BC, em 1947.
Buraco
Para a economista-chefe do Banco ING, Zeina Latif, apesar de o mercado apostar em rombo nas contas externas de até US$ 64 bilhões em 2010, o correspondente a 3% do Produto Interno Bruto (PIB), os números conservadores do BC estão mais próximos da realidade. Ela acredita, inclusive, que a medida em que o buraco nas transações correntes do país com o exterior for aumentando, os preços do dólar subirão, reduzindo as importações, as remessas de lucros e as viagens ao exterior. ;Por isso, a importância do câmbio flutuante, para fazer o ajuste natural das contas externas;, frisou.
Sílvio Campos Neto reconheceu, contudo, que não é saudável para um país registrar deficits em transações correntes muito superiores a 2% do PIB por muito tempo, pois, em momentos de escassez de capital, a dependência por financiamentos externos pode levar a crises cambiais, que, no passado, custaram muito caro ao Brasil.
Chance de viajar mais
A combinação de dólar barato, renda em alta e oferta maior de emprego levará os brasileiros a gastarem como nunca no exterior em 2010. Pelas contas do chefe do Departamento Econômico do Banco Central, Altamir Lopes, o rombo na conta viagem chegará a US$ 7 bilhões, o maior já computado em 62 anos, tempo de vigência da série histórica da instituição. Em setembro último, quando divulgou as primeiras estimativas para as contas externas do ano que vem, o BC apostava em um deficit em viagens de US$ 5 bilhões. ;Tivemos de refazer as contas, pois houve uma recuperação muito rápida da renda e do emprego depois do estouro da crise;, disse.
O aumento da disposição dos brasileiros em viajar para fora do país começou a se delinear no meio deste ano. Tanto que o BC, que projetava um buraco de US$ 1,5 bilhão para 2009, teve que refazer os cálculos várias vezes. Passou a prever deficit de US$ 3 bilhões, depois elevou para US$ 4,5 bilhões e, agora, fala em US$ 5,5 bilhões. Essa trajetória foi exatamente na direção contrária à do dólar, que começou o ano acima de R$ 2,20 e, desde então, embicou rumo a R$ 1,70 ; ontem, fechou a R$ 1,79. ;É importante deixar claro, porém, que também estamos prevendo aumento nos gastos de turistas estrangeiros no Brasil;, frisou Altamir.
Em novembro, especificamente, o deficit na conta viagem foi de US$ 514 milhões, valor quatro vezes maior do que o buraco registrado no mesmo mês de 2008 (US$ 127 milhões), auge da crise mundial. Em dezembro, até ontem, os gastos de brasileiros no exterior já superam as receitas trazidas por turistas estrangeiros em US$ 362 milhões. (VN)
Análise da notícia
Sinais de investimento maior
Ainda que o deficit nas contas externas não seja desejável, sobretudo por causa do histórico de crises cambiais do Brasil, há um lado positivo nos números divulgados pelo Banco Central. O que se vê é um forte aumento das importações de máquinas e equipamentos, um sinal de que o setor produtivo voltou a investir na ampliação de fábricas. Os projetos haviam sido suspensos por causa da crise mundial.
Mas é importante que o governo acompanhe com lupa o rombo maior em transações correntes no ano que vem, que ficará ligeiramente acima de 2% do Produto Interno Bruto (PIB). Não se pode permitir uma farra de importações de bens de consumo, prejudicando o parque produtivo nacional. Esse filme nós vimos entre 1994 e 1998, período do câmbio fixo, do dólar cotado a R$ 1. Puxado pelas compras no exterior, o deficit em transações correntes passou de 5% do PIB, levando o balanço de pagamentos do país a uma situação insustentável, culminando com a adoção do sistema de taxas flutuantes.
Há países, como a Austrália, que convivem há ano com deficit em transações correntes acima de 4% do PIB. O Brasil, porém, não se deve dar esse luxo. Deve, sim, aumentar a poupança interna para não depender tanto do humor dos estrangeiros para financiar seu crescimento. (VN)