O ingresso do Paraguai no mercado livre de energia do Brasil, acertado entre os dois países no fim da semana, animou os defensores de uma maior abertura comercial do setor elétrico nacional. Comprar eletricidade para uso residencial da mesma forma como se adquire créditos para celular pré-pago ou trocar de fornecedor sempre que encontrar energia com preços e garantias mais atraentes são práticas adotadas há anos em países desenvolvidos, graças às novas tecnologias e a legislações mais flexíveis.
"O consumidor brasileiro tem o direito de buscar soluções de mercado, que resultem em mais competição, transparência e eficiência do sistema elétrico", defende o engenheiro Paulo Pedrosa, presidente da Associação Brasileira dos Agentes Comercializadores de Energia Elétrica (Abraceel), nesta entrevista ao Jornal do Commercio. Pedrosa não tem dúvida de que o País está maduro para consagrar o mercado livre de energia, a exemplo do ocorrido na telefonia móvel. Ele sublinha que consumidores livres de energia do Brasil já respondem por 25% (120 mil megawatts médios) do mercado total de energia elétrica (50 mil).
Para o executivo, o acordo entre Brasil e Paraguai terá impacto nesse mercado, ao autorizar o país vizinho a vender energia de Itaipu e de outras usinas no mercado livre brasileiro, gradualmente e sem a intermediação da Eletrobrás. Os países definirão nos próximos meses percentuais e prazos que regularão a entrada da estatal paraguaia Administração Nacional de Energia (Ande) no mercado livre. Mas o Paraguai deve começar com 2 mil gigawatts/hora, perto de 2% da produção de Itaipu, de 90 mil gigawatts. A energia "excedente", produzida em ano chuvoso, representaria 15%. Os 75 mil gigawatts já garantidos às distribuidoras não se alterariam.
A Abraceel, que completará 10 anos em janeiro de 2010, reúne 40 associados, entre eles Vale, Petrobras e Cemig. São comercializadoras grandes e pequenas, nacionais e internacionais, privadas e públicas, com múltiplas áreas de atuação, desde clientes de energia livre a consultorias de eficiência energética e gestores de contratos.
Como o senhor avalia a venda de energia pelo Paraguai da usina de Itaipu no mercado livre brasileiro?
Paulo Pedrosa ; Itaipu é um projeto binacional, regido por um tratado internacional que é inclusive superior hierarquicamente à legislação específica do setor elétrico. A usina foi construída com base na ideia que sua energia seria distribuída aos consumidores brasileiros. Assim cada distribuidora receberia uma "fatia" da energia na proporção de seu mercado e pagaria por isso um valor correspondente à mesma proporção dos custos operacionais e financeiros da usina. Quando este modelo foi montado não existia o mercado livre e o setor elétrico brasileiro não estava ainda interligado, tanto que as distribuidoras do Norte e Nordeste não têm contratos para receber a energia gerada por Itaipu. Respeitada a legislação e as regras de funcionamento do setor é possível discutir a atualização do modelo comercial para a energia de Itaipu, de forma a torná-lo compatível com a realidade atual do setor. Quanto ao preço, é bom lembrar que a energia de Itaipu é calculada em dólares. Hoje o dólar está baixo, mas em muitos momentos a usina ajudou a encarecer muito as contas de energia no Brasil. Naturalmente a questão que está sendo discutida envolve variáveis políticas, legais e técnicas. Mas é possível construir uma solução que seja positiva para os mercados livre e cativo no Brasil e para as economias dos dois países.
O mercado livre está pronto para novos desafios além deste?
Paulo Pedrosa ; Nos últimos 10 anos o mercado amadureceu bastante e se diversificou. O período de sobreoferta foi importante para o crescimento do mercado, mas é no equilíbrio que ele se desenvolve em todo o seu potencial. Hoje, os consumidores tomam decisões com um conhecimento do mercado muito mais profundo, o que desafia os vendedores a aperfeiçoar cada vez mais seus produtos. Nestes 10 anos ficou claro o potencial da reação da demanda aos sinais de preço e o quanto esse efeito poderia ajudar ao sistema como um todo se seu potencial fosse aproveitado. Também ficou evidente que a proteção do leque tarifário do consumidor cativo pode não ser uma opção tão estável quanto parece. Tudo isso valoriza cada vez mais a transparência, a previsibilidade e o tratamento individualizado que só o mercado livre pode oferecer. Além disso, o mercado livre participa ativamente do processo de crescimento da economia, dentro dos limites fixados pelas normas legais. Muitas pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) estão sendo financiadas pelo BNDES com base em contratos de até 15 anos para consumidores livres. Nos leilões do Rio Madeira o mercado livre também contribuiu para a viabilidade das usinas, inclusive promovendo a modicidade do mercado cativo. Estamos prontos para o próximo passo, que seria a participação isonômica dos comercializadores como compradores nos leilões de energia nova, gerenciando os contratos gerados em suas carteiras de atendimento. Já sinalizamos ao Ministério de Minas e Energia que gostaríamos de disputar, por exemplo, do leilão da hidrelétrica Belo Monte, cujo edital deverá sair até dezembro.
O poder do consumidor está consagrado em inúmeras práticas comerciais. E no setor de energia elétrica?
Paulo Pedrosa ; Atualmente, quem dá as cartas no mundo inteiro, em todos os setores, são os consumidores. No Brasil, em relação ao setor elétrico, ainda estamos razoavelmente atrasados, pois o sistema ignora o poder de decisão dos consumidores e os considera ainda sem condições para tomar decisões de contratação de energia elétrica. Curiosamente, isso ocorre no mesmo país onde o modelo das telecomunicações é totalmente calcado no poder de decisão dos consumidores. Haja vista o extraordinário sucesso da expansão da nossa planta de telefonia celular, que é muito competitiva. Nesse segmento, o consumidor dá integralmente as cartas, escolhe o tipo de telefone, como quer pagar, pode mudar de operadora a cada semana. E o modelo é um sucesso absoluto, do qual ninguém pode reclamar. No setor elétrico, ao contrário, o sistema ainda julga que o consumidor é incapaz para decidir quanto ao seu fornecedor de energia elétrica. Para se ter idéia de como a coisa já se desenvolveu lá fora, o consumidor residencial de qualquer país da União Europeia (UE), pode, desde julho de 2007, escolher seu fornecedor de energia elétrica e de gás pela internet. Nem todos fazem isso, mas pelo menos têm o direito.
Os modelos europeu e norte-americano de mercado livre podem ser reproduzidos na realidade brasileira?
Paulo Pedrosa ; Ainda temos muito o que aprender com Europa e Estados Unidos, por exemplo. No caso europeu, é claro que as soluções não são transplantáveis. Lá os sistemas são intrinsecamente diferentes do nosso, a começar pelo fato que cada agente decide o quanto deverá gerar, a partir de suas declarações em leilões que ocorrem um dia antes da produção, ou em leilões de ajuste feitos até uma hora antes da geração ou consumo. Os contratos são voltados para a entrega física do produto energia e os vendedores devem assegurar o transporte de sua produção até o ponto de consumo, inclusive comprando direitos de passagem nos casos de limitação nas redes de transmissão. Os períodos de contratação são também muito diferentes dos nossos, estando a maioria no campo que consideraríamos curto e médio prazo. Na Europa, prazos semelhantes aos praticados no Brasil seriam considerados anti-competitivos pela autoridade da concorrência. Lá também são maiores as opções oferecidas: contratação de energia bilateral ou multilateral em bolsas, sendo esta com produtos padronizados variando do dia ou semana seguinte a sete anos no futuro, Para os que desejarem é possível a simples exposição aos preços spot, que pode ser mitigada por um conjunto de produtos financeiros, também oferecidos bilateralmente ou em bolsas. Para a União Europeia há uma percepção muito clara que os mercados bem regulados são aliados dos governos na promoção da segurança do abastecimento e na eficiência (modicidade tarifária) do setor. Acompanhando a experiência européia, poderemos avançar bastante e avaliar a ampliação do papel da demanda no mercado, da comunicação dos sinais de preço aos consumidores, da liquidez dos contratos, da criação de mecanismos de compra com prazos mais adequados à realidade do mercado e de um ambiente em que todos os participantes tenham acesso à energia disponível, especialmente a dos projetos de expansão competitivos. Nos Estados Unidos, contudo, não existe uma visão clara em relação ao desenvolvimento dos mercados e sobre qual das alternativas adotadas é o melhor caminho a seguir. Em geral não parece haver dúvida em relação à tese da adoção de soluções de mercado para o setor elétrico, mas, sim, se os mercados de energia dos EUA estão sendo capazes de produzir preços justos e razoáveis em benefício dos consumidores.
As opções de energia com ecológico seriam favorecidas com a maior abertura de mercado?
Paulo Pedrosa ; Sim. Um item extremamente importante para o Brasil, no campo da energia elétrica é a geração das chamadas energias alternativas ou renováveis. O País está em condições de oferecer um leque extraordinário de opções, como energia produzida a partir do bagaço de cana, de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) e usinas eólicas (energia dos ventos), por exemplo. Até mesmo em relação à energia fotovoltaica (solar) já estão sendo desenvolvidas experiências, no Brasil, e a expectativa é que, dentro de algum tempo, ela se torne igualmente competitiva. Por enquanto, ainda é um pouco cara. O mercado livre tem sido extremamente competente na colocação da energia alternativa e isso é um diferencial a favor do País, pois gera investimentos, empregos e renda, recolhe-se tributos e o meio ambiente agradece. A diferença de preços entre energias limpas e de alto carbono tende a se inverter no futuro.
As novas tecnologias fortaleceriam "soluções de mercado" para o setor elétrico?
Paulo Pedrosa ; Claro. Mudanças profundas no setor elétrico e na tecnologia de medição e processamento de informações ainda não se refletiram na estrutura das tarifas, que seguem modelo com 25 anos de utilização, levando os consumidores a um comportamento que não otimiza o uso do sistema. Estamos distantes das chamadas smart grids (redes inteligentes), que estabelecem relação de grande eficiência entre consumidores, comercializadores e sistema de energia no geral. Além disso, existe uma defasagem entre o sinal econômico de curto prazo ; que reflete o custo de produção ; e as tarifas do varejo ; que definem o consumo. Tal desacoplamento contribui para uma volatilidade exagerada e para decisões não eficientes de consumo. A resposta da demanda é um instrumento valioso à disposição do setor elétrico brasileiro e de seus consumidores, capaz de alinhar os objetivos de segurança e confiabilidade do abastecimento com a modicidade de preços e tarifas, tornando-se uma aliada do regulador, operador, governo e até do meio ambiente. Quer exemplo? Em Nova York, um carro abastecido automaticamente na madrugada com energia vinda de usinas eólicas (dos ventos) garante tarifas melhores ao usuário e ainda pode ser chamado de 100% ecológico, não polui e compra de quem não polui. Mas de nada adianta a evolução tecnológica, que está tornando a microgeração uma possibilidade e que já tornou a eficiência no consumo uma tendência, e nem os medidores mais inteligentes e os computadores mais capazes de tratar informações sobre a carga de cada consumidor em cada momento, se os preços não fornecem a informação correta para a reação inteligente da demanda. A questão central para qualquer setor, sobretudo para o setor elétrico brasileiro, é a da qualidade do sinal de preço, uma espécie de bússola com capacidade para alinhar toda a cadeia da indústria. É justamente nesta questão que estão nossos maiores desafios e é nela que residirá a base de todos os benefícios que serão construídos com o aperfeiçoamento do setor elétrico. No atual modelo do setor elétrico brasileiro, a reação da demanda é possível apenas no mercado livre, onde os consumidores estão expostos aos sinais de preço de curto prazo. A ampliação do mercado livre potencial, com a redução do requisito de demanda para migração, está prevista em lei para vigorar desde 2003, mas ainda não foi regulamentada.