Em um dia qualquer de 1991, Virgulino
Gomes Eugênio chegou cedo ao trabalho e antes mesmo de ocupar sua mesa foi chamado para uma
reunião. A conversa com o chefe não durou muito. ;Eles me demitiram e até hoje nem sei por que;,
lembra o ex-funcionário da extinta Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal). Eleitor de
Fernando Collor, e com seis anos de experiência, o habilidoso operador de telex levou um susto
tão grande que não conseguiu ir para casa de imediato. Assim como ele, cerca de 100 mil
servidores e empregados públicos da administração direta e indireta viveram o mesmo pesadelo.
Hoje, Eugênio dá expediente na Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A anistia concedida
em março pelo governo federal devolveu ao servidor a dignidade e o orgulho perdidos. ;Fiquei
longe 18 anos. Tive de trabalhar de pedreiro, servente de limpeza e porteiro para sobreviver.
Agora que estou de volta é uma felicidade muito grande;, comemora enquanto organiza a papelada
do setor de protocolo. Virgulino Gomes Eugênio e cerca de 4 mil outras pessoas que esvaziaram as
gavetas há quase duas décadas já reassumiram ou estão prestes a assumir antigas funções.
Primeiro a chegar e o último a sair da repartição, o servidor recém-contratado vem se adaptando
bem à rotina, embora ainda não saiba lidar direito com o computador. ;No meu tempo, não tinha
nada disso. Vou ter que aprender;, resume em tom bem-humorado.
Implantada no país em 1994, por força da Lei 8.878(1), a política de anistia de servidores
demitidos durante a era Collor está no auge. Depois de amargar anos de marasmo, a Comissão
Especial Interministerial (CEI) ; responsável pela análise dos processos de readmissão ; ganhou
nova estrutura e conseguiu agilizar o retorno dos interessados. É nela que milhares de pessoas
depositam suas esperanças. ;Estamos empenhados em concluir tudo até outubro;, diz Idel Profeta
Ribeiro, presidente da CEI.
Profeta, que assumiu o cargo em fevereiro, explica que a comissão despacha, em média, 1 mil
processos por mês. Desde seu surgimento, a CEI recebeu 14 mil pedidos de retorno: 9 mil deles
tiveram algum tipo de tratamento, sendo que 7.663 tiveram pareceres favoráveis. ;Reintegramos
3.583 anistiados ao Executivo Federal. Além de aumentarmos o número de análises, passamos a
promover reuniões mensais de balanço, para que o anistiado que aguarda o retorno possa estar
sempre em contato com a comissão;, completa.
Remuneração
Preferencialmente, os anistiados voltam para os órgãos de origem. Os ex-servidores também ocupam
vagas deixadas pela mão de obra terceirizada ou vão desempenhar novas funções em setores
estratégicos do governo, como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Se a empresa
pública foi extinta, cabe ao Ministério do Planejamento fazer a recolocação. A remuneração atual
é calculada com base em critérios objetivos, não havendo efeito retroativo sobre salários ou
qualquer tipo de indenização.
O advogado Ulisses Borges, especialista em anistiados, afirma que a reintegração não implica em
gastos extras para a administração pública. A cada ano, há previsão de recursos justamente para
atender esse propósito. Segundo ele, boa parte dos erros foram corrigidos, mas ainda há muito o
que fazer. ;É preciso reabrir o prazo de contestação para que as pessoas que foram demitidas,
mas que não entraram com pedidos de retorno junto à CEI, tenham o direito de voltar.;
No Rio de Janeiro, onde a maior parte dos anistiados está concentrada, um grupo de ex-servidores
articula a criação de uma entidade nacional que tentará com o governo e o Congresso Nacional
definir novas datas para que os anistiados contestem as demissões. Wilson Dufles, demitido do
Banco Nacional de Desenvolvimento Social em 1991, estima que cerca de 20 mil trabalhadores sejam
beneficiados com a medida.
1- POSSIBILIDADE DE RETORNO É LEGAL
A Lei 8.878, conhecida como lei da anistia, descreve as condições para a readmissão dos
servidores demitidos durante o governo Collor. Texto, sancionado em 11 de maio de 1994,
estabelece que têm direito a pedir a reintegração os servidores que perderam o emprego sem
motivação aparente entre 16 de março de 1990 e 30 de setembro de 1992. As demissões
ocorridas nesse intervalo, e que se enquadram em uma série de critérios específicos que
caracterizam abuso ou injustiça por parte do governo central, são passíveis de revisão.
; Mais prazo para recorrer
Aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, um projeto de lei reabre o prazo
para requerimento de retorno ao serviço público com base na lei de anistia. A proposta, que está
na Câmara dos Deputados para análise, é de autoria do senador Edison Lobão Filho (PMDB-MA). De
acordo com o parlamentar, as chances de aprovação são grandes porque há o entendimento geral de
que os períodos definidos em anos anteriores para a contestação das demissões foram curtos
demais.
Lobão Filho acredita que os deputados não vão se opor à mudança na legislação vigente. ;É um
caso de justiça social;, resume. No texto, o senador assinala que a União tem de dar mais 365
dias para que os demitidos que perderam a oportunidade legal de se justificar encaminhem
formalmente seus pedidos de reconsideração. Desde 1994, o Diário Oficial da União (DOU) tem sido
o canal para a divulgação de atos, portarias e autorizações que dizem respeito à anistia. ;O
problema é que o cidadão comum não lê o DOU, por isso é preciso reabrir o prazo;, completa Lobão
Filho.
Sindicatos e associações ligados ao funcionalismo não têm informações onde estão e qual a
situação dos ex-servidores que deixaram a administração pública naquele período. Na internet,
blogs e grupos de discussão informam que muita gente viveu de bicos, trocou de profissão, fez
carreira no setor privado, fez concurso público ou simplesmente faleceu. Lobão Filho, antes de
apresentar seu projeto, diz que questionou o ex-presidente Fernando Collor sobre as demissões
feitas durante seu governo. ;Ele me disse que se arrepende e que se pudesse voltar atrás não
faria aquilo de novo;, completou o senador. (LP)
; Linha do tempo
1990 ; 1992
É implantada uma agressiva política de reforma da estrutura administrativa federal. Alguns
órgãos se fundem e outros são extintos pelo ex-presidente Fernando Collor. Os sindicatos acusam
o governo de perseguir servidores públicos.
1993
O ex-presidente Itamar Franco cria uma comissão especial responsável pela análise dos termos de
dispensa.
1994
Promulgada a Lei 8.878, que define critérios para a concessão de anistia aos funcionários
demitidos que manifestarem desejo de retornar ao antigo emprego.
1995-2003
Executivo determina o reexame geral dos processos de anistia. Reintegrações ficam praticamente
congeladas. Ações na Justiça se multiplicam, mas poucos trabalhadores ganham o direito de voltar
ao trabalho.
2004
Surge a Comissão Especial Interministerial (CEI). O presidente Luiz Inácio Lula da Silva
determina que o Ministério do Planejamento imprima novo ritmo à análise dos processos de
anistia, dá mais transparência ao processo e estimula os demitidos a oficializarem seus pedidos
de anistia.
2005-2006
Reintegração dos anistiados esbarra em obstáculos jurídicos e na falta de uma orientação
administrativa comum aos ministérios. Jogo de empurra na Esplanada emperra a convocação dos
interessados.
2007
Parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) posiciona-se a favor da readmissão dos ex-servidores.
Documento dá novo impulso ao processo de anistia da era Collor. Processos de retorno são
analisados em menor tempo.
2008
Ritmo de recontratações é acelerado, mas metas não são alcançadas integralmente pela CEI.
2009
Novo presidente assume a comissão responsável pela análise dos processos protocolados por
servidores. Corpo técnico é reforçado e as anistias passam a ser concedidas em tempo hábil