A economia brasileira deve passar por um forte freio já no último trimestre do ano, quando o crescimento anualizado deve ficar entre zero e 2%. Mas é improvável que mergulhe na recessão. A previsão é do economista Armando Castelar, analista da Gávea Investimentos e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Respeitado pela ponderação com que avalia a conjuntura interna e externa, Castelar acredita que o Banco Central (BC) pode ser obrigado a aumentar os juros caso o dólar alto continue pressionando os preços.
;A economia vinha num ritmo muito forte. Tentar mantê-la crescendo como antes é apostar na inflação;, disse Castelar em entrevista ao Correio. Diferentemente da onda keynesiana que assolou o país exigindo o aumento das despesas públicas como forma de estimular a atividade, o analista receita redução nos gastos correntes. O objetivo é liberar mais recursos para os investimentos e abrir espaço para a redução dos juros.
Cético, Castelar não acredita que uma nova arquitetura financeira mundial surgirá dos escombros da crise. Tampouco crê que os países desenvolvidos abrirão mão de parte do poder para dar mais voz aos emergentes. ;Quem paga a banda escolhe a música;, disse. Ele aposta no sangue novo que o recém-eleito Barack Obama vai injetar na política norte-americana, mas ressalta que a superação da crise vai exigir ;trabalho duro; de todos os governantes. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Freada obrigatória
Se aumentar os juros, o Banco Central controla a inflação, mas prejudica a economia. Como escapar?
A posição do BC reflete o momento de incerteza. Não se sabe o tamanho da crise e o BC tem tido uma atitude cautelosa. A economia está desacelerando, mas há uma forte pressão de repasse da desvalorização do câmbio para os preços. Isso muda a situação dos últimos anos, quando a apreciação do real foi a grande aliada do BC no combate à inflação. O BC deve manter os juros estáveis em dezembro, mas pode ser forçado a subi-los se o câmbio continuar pressionado.
Vai haver recessão no Brasil?
O país ganhou muito no cenário internacional de excesso de recursos disponíveis que prevaleceu entre 2003 e 2007. Isso mudou. Está havendo movimento de saída de capital e as exportações estão caindo de maneira muito rápida. A economia vinha num ritmo muito forte. Tentar mantê-la crescendo como antes é apostar na inflação. O país tem que desacelerar para se ajustar a um cenário menos favorável. No quarto trimestre, o crescimento anualizado deve ser entre zero e 2%. Considerando que estávamos num ritmo de 6%, é uma parada brusca. Mas não deve haver recessão.
O governo deve aumentar gastos para estimular a economia?
Nos últimos cinco anos, a política fiscal já foi muito expansionista. Descontada a inflação, os gastos públicos cresceram entre 8% e 10%, mais do que o dobro do PIB. O que permitiu o aumento das despesas foi a arrecadação, que bate recorde todo mês. Mas ela vai crescer menos porque as empresas e o mercado de capitais estão perdendo. Gastar mais só vai causar problemas para o controle da inflação. Seria melhor reduzir o ritmo de crescimento de gastos correntes, preservar investimentos e abrir espaço para reduzir juros.
O governo tem atuado de forma coerente diante da crise?
Essa crise tem surpreendido todos os governos, que não conseguem se antecipar a seus efeitos. O governo brasileiro não fugiu a essa regra. No Brasil, se subestimou um pouco o impacto interno. Houve um foco exagerado no canal de transmissão do comércio e não se esperava que a contração do crédito viesse forte como veio. O BC tem sido um pouco mais ágil nesse processo de identificar os riscos. O problema é que essa crise ainda vai surpreender.
De que forma?
Ela se assemelha a uma onda num ambiente fechado. Vai e volta, perdendo um pouco a força. Começou nos países desenvolvidos e agora está batendo nos emergentes. Virá uma segunda onda, uma queda da produção dos Estados Unidos pela retração das exportações para os emergentes. O aumento da inadimplência nos países do Leste europeu vai afetar vários bancos estrangeiros. Ainda pode haver quebra de bancos.
O presidente Lula está certo ao recomendar que os consumidores continuem comprando?
A posição dos chefes de governo no mundo todo é muito delicada. Eles não querem criar um clima de pessimismo, pois isso prejudica ainda mais a economia. Os presidentes precisam alimentar a confiança, mas também devem dar uma dimensão correta para a crise. Se os brasileiros pararem de consumir, o efeito será muito ruim. Mas, ao mesmo tempo, as pessoas precisam tomar cuidado ao se endividar porque o mercado de trabalho vai ter uma evolução menos favorável. O recomendável é que os consumidores avaliem bem sua capacidade de pagamento.
Que setores da economia devem sofrer mais com a crise?
Os setores de commodities (produtos com cotação no mercado internacional) vêm sofrendo porque houve queda de preços, o que causa redução da lucratividade dos projetos. Os prejuízos são maiores em segmentos de aço, minério de ferro e no agrícola, que vão passar por uma reversão do bom momento dos últimos dois anos. As áreas muito dependentes do crédito, como bens duráveis e de capital, também vão ser afetados, como vem acontecendo com a venda de automóveis.
A recessão nos países desenvolvidos vai durar muito?
A tendência é que seja uma recessão longa. Os bancos, as famílias e as empresas vão precisar reduzir seus endividamentos. O setor financeiro vai encolher, os trabalhadores terão que aumentar a poupança. Isso não se faz de forma rápida. A hipótese de ser uma queda muito forte com imediata recuperação está descartada. Os países emergentes não vão conseguir manter a economia mundial crescendo.
Quando o mundo vai se recuperar?
Certamente 2009 será um ano ruim e 2010 terá um crescimento muito baixo. Dificilmente o mundo vai viver a partir de 2011 o que viveu nos anos dourados de 2003 a 2007, quando experimentou o maior crescimento médio desde os anos 1960. Nos últimos anos, a prosperidade deveu muito à expansão financeira, que deve sofrer um refluxo. O consumidor americano foi o motor, baseado num nível de endividamento que não vai mais poder ocorrer.
O senhor acredita na criação de uma nova arquitetura financeira mundial?
Não vai haver o que se está chamando de uma nova arquitetura. Isso seria uma redefinição do papel de instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, com possível criação de outras instituições. O que vai ocorrer é uma maior regulamentação do sistema, com regras contábeis mais rígidas, exigência de capital maior para as instituições, uma ampliação do controle estatal e maior transparência. Alguns instrumentos financeiros passarão por uma padronização de contratos. O mercado vai trabalhar de forma diferente, mas não vai acontecer nada como a Conferência de Bretton Woods, que redefiniu o setor depois da Segunda Guerra Mundial.
As nações emergentes terão mais voz depois da crise?
Não. No mundo, o que manda é o tamanho da economia e o poderio militar. O diretor-gerente do FMI, Dominique Strauss-Kahn, disse que a China tem que colaborar com suas reservas para viabilizar mais empréstimos do Fundo, mas sem ganhar mais participação no capital votante. Esse é o tipo de negociação que está sobre a mesa. Os países desenvolvidos não vão abrir mão de poder. A ministra de Finanças da França, Christine Lagarde, foi muito clara na semana passada. Quem paga a banda escolhe a música. Essa visão vai continuar prevalecendo. Se os emergentes aumentarem o seu tamanho na economia mundial, podem ser mais ouvidos. Mas esse é um processo lento. Não será por causa da crise.
O que se pode esperar de Barack Obama quando ele assumir a Casa Branca?
Faz muita diferença ter um governo recém-eleito injetando sangue novo e ânimo. Fica mais fácil tomar medidas de maior amplitude. Mas sair da crise vai exigir um esforço de coordenação por parte do governo americano. Não se deve superestimar os efeitos da troca de poder nos EUA. Essa é uma crise complicada. Vai ser preciso trabalho duro por alguns anos das autoridades do mundo inteiro.