Num país em que muita gente prefere dar a atenção a pessoas e coisas toscas, é bem provável que Sérgio Ricardo será lembrado não pela autoria de trilhas de filmes icônicos do Cinema Novo, como Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, e sim por ter quebrado o violão durante a apresentação no 3º Festival da Record, em 1967, ao ser vaiado por parte do público, quando interpretava o samba Beto bom de bola.
Músico, compositor e cineasta Sérgio Ricardo morreu na manhã de ontem, aos 88 anos, no Hospital Samaritano, na Zona Sul do Rio de Janeiro, onde estava internado. A causa do óbito foi insuficiência cardíaca, embora em maio tivesse contraído a covid-19, doença da qual havia se curado. O enterro está previsto para hoje à tarde, com presença restrita dos familiares, devido à pandemia.
A família do artista postou foto com uma mensagem no Instagram em que diz: “Hoje pela manhã, partiu o nosso mestre Sérgio Ricardo, nosso amado João Lutfi, de muita arte e, resistência e, acima de tudo, muito amor. Suas expressões nos deram e darão ainda muita alegria, mas até os guerreiros precisam descansar”.
Paulista de Marília, descendente de árabes, Sérgio Ricardo nasceu em 18 de junho de 1932 e recebeu na certidão de nascimento o nome de João Lutfi. Adolescente, na cidade natal fez conservatório de música. O codinome Sérgio Ricardo passou a utilizar quando se radicou no Rio de Janeiro em 1950, onde fez história ao lado de outros nomes destacados das artes brasileiras. Oficialmente, a carreira musical teve início em boates da noite carioca, lado a lado com mestres da MPB como Tom Jobim, João Donato, Johnny Alf e Tito Madi. Maysa foi a primeira grande intérprete a gravar composição dele.
Tido como um pré-bossanovista, em 1960 gravou o primeiro LP, intitulado A bossa romântica de Sérgio Ricardo. Dois anos depois, participou do histórico festival da Bossa Nova no Carnegie Hall, em Nova York, ao lado de João Gilberto, Tom Jobim, Roberto Menescal, Carlos Lyra e Sérgio Mendes. Amigo de João Gilberto, o acolheu em sua casa antes de ele se tornar famoso. As idiossincrasias do futuro “pai da bossa nova”, os levaram a se afastar.
Em 30 de setembro de 2008, no show que fez no Theatro Municipal, em comemoração aos 50 anos do movimento, surpreendentemente falante, João, depois de longo tempo, fez referências elogiosas a Sérgio. “Conheci Sérgio Ricardo no final dos anos 1950, tocando piano na noite do Rio. Nos tornamos amigos e estivemos juntos no Festival no Carnegie Hall. Depois disso, ele passou a fazer música, com letras de cunho social, além de trilhas para cinema”, lembra Roberto Menescal.
Violão
O grande público só veio tomar conhecimento desse multiartista em 1967. Ao participar da terceira edição do Festival de Música da TV Record, num clima de grande rivalidade entre espectadores, Sérgio Ricardo foi estrepitosamente vaiado pela plateia. Sem poder ser ouvido, após um rápido discurso, atirou o violão — único instrumento a acompanhá-lo — contra o chão do palco, espatifando-o. Quem o vaiava eram os que torciam por músicas como Ponteio (Edu Lobo), Domingo no parque (Gilberto Gil), Roda Viva (Chico Buarque) e Alegria alegria (Caetano Veloso). A cena pode ser vista no documentário Uma Noite em 67, de Renato César e Ricardo Calil, lançado em 2010.
Militante da arte politizada, Sérgio compôs trilhas para filmes do chamado Cinema Novo como Deus e o diabo na terra do Sol e Terra em transe, do genial Glauber Rocha. Em 1964 — quando o Brasil passou a viver sob a truculência da Ditadura Militar — à qual sempre se opôs, dirigiu o filme Esse mundo meu. Sua produção cinematográfica mais marcante foi A Noite do Espantalho, de 1974, filme rodado em Nova Jerusalém, no sertão pernambucano, para a qual criou também a trilha sonora, com músicas interpretadas por ele, Alceu Valença e Geraldo Azevedo. Alceu foi escolhido para dar vida ao personagem Espantalho.
“Quando me encontrei com Sérgio para gravar A Noite do Espantalho para o Disco de Bolso do Pasquim, ele disse sorrindo ‘Você é o espantalho’. A princípio fiquei ressabiado, pensando que se tratava de uma ofensa. O Sérgio insistiu: ‘Você vai ser o galã do filme’”, conta Alceu Valença. “Durante esses anos todos mantivemos uma ligação fraterna e um sentimento recíproco de admiração. Em 2013, participei da Estória de João-Joana, espetáculo de Sérgio, que ficou em cartaz durante uma semana, no Teatro Nacional, em Brasília. Há dois anos, tomei parte do DVD dele gravado no Teatro Municipal, em Niterói. Ele era um artista único, por quem terei sempre sentimento de gratidão. Viva Sérgio Ricardo!”, saúda.
O artista lançou 17 discos, sendo o mais recente Cinema na música de Sérgio Ricardo, de 2019. Como diretor de cinema é autor de cinco filmes, dos quais A Noite do Espantalho é o de maior relevância. Na área da literatura, escreveu cinco livros. Um deles é o emblemático A canção calada, também de 2019 — ano em que se manteve totalmente dedicado à cultura — algo tão nefasto para quem hoje detém o poder no país.
*Colaboraram Geovana Melo e Paula Barbirato sob supervisão de Igor Silveira
» Depoimento
Climério Ferreira
Meu Deus, como João Lufti, digo Sergio Ricardo, amou nosso país! E o fez nos momentos mais difíceis da nossa história. E o fez com toda coragem e risco, participando, na área da cultura, dos movimentos mais significativos da sua época: a Bossa Nova e o Cinema Novo. Nos deixou de herança as músicas Zelão, Ponto de partida e Beto bom de bola e tantas outras. Participou do histórico show do Carnegie Hall. Ah, sim: e quebrou o violão e o atirou à plateia, no Festival da Record, em 1967. Fez cinema A Noite do Espantalho e o belo Esse Mundo é Meu e compôs as trilhas de Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe. Convenhamos, a trajetória de Sérgio? Ricardo foi muito rica. Ele deixou a sua marca.