Na herança da liberdade criativa adquirida em Brasília pelo cineasta José Eduardo Belmonte é uma das refererências atuais do cinema brasileiro. Guarda uma relação mais que afetiva com a capital do país. “Já senti desde solidão até medo e coragem, na travessia do Eixão”, confidencia com certo humor. Foi com uma mente inquieta e sentimentos à flor da pele que Belmonte, chegado à cidade ainda pequeno, nos anos de 1970, despontou para as artes, entre expressos desejos de se fazer roqueiro, jazzista, escritor e acabar na afirmação da carreira de cineasta, aos 16 anos.
Foram muitos os cruzamentos pelo Eixão, enquanto estudante de cinema da Universidade de Brasília (UnB), nos anos de 1990. Belmonte assumiu a vocação de diretor — que o leva à condição de ter assinado nove longas, em apenas 17 anos —, diante das orientações e das chances dadas pelo mestre e cineasta Armando Bulcão. Mordido pelo desejo de expandir horizontes, atualmente o diretor oscila entre as temporadas candangas e cariocas. E, em tempos de coronavírus, leva uma penca de trabalho para o aconchego do lar, de onde preconiza: todos devem estar resguardados e não sair de casa.
Impulsionado pela diversidade e inovação, o diretor de 49 anos encarrilha as montagens de nada menos do que quatro projetos (Auto da mentira, Alemão 2, As verdades e O pastor e o guerrilheiro, filmado, em parte, na cidade). Somado a tudo isso, Belmonte acalenta o desejo de concluir o documentário Aurora, em torno da artista plástica Rita Wainer.
» Entrevista // José Eduardo Belmonte
Qual a sua ligação com a cidade?
Eu vim muito novo, no início dos anos 1970, porque meu pai optou ser transferido para Brasília. Trouxe a família e ficamos. Havia muito incômodo de uma parte da família, porque era uma cidade em construção. As novidades chegando com muito atraso, poucas opções culturais, longe do mar (minha família é do Rio de Janeiro); tudo seco, vazio. Sentia o eco desse incômodo quando criança, mas, de fato, como não tinha outra referência pregressa, essa visão de mundo em Brasília foi minha primeira definição. Ao mesmo tempo em que percebia uma melancolia pelo “desterro”, também sentia uma imensa liberdade.
Você se percebe candango? Ainda “mora” aqui de algum modo?
Eu não tenho o título, mas a maior parte da minha vida e formação foi aqui. Talvez não seja a mesma pessoa de quando ficava sempre na cidade, mudei como todo mundo muda, inclusive de cidade, mas levo bastante Brasília comigo, pois, de fato, sou brasiliense. Minha família ainda mora por aqui; sempre que posso, venho à cidade.
Como despertou para as artes?
Aos 4 anos já descia, sozinho, para brincar embaixo do bloco e andava pela quadra descobrindo coisas na natureza que convivia com o concreto. E ainda, sobre o mim, o céu e a ampla visão permanente do horizonte. Penso que essa fricção entre a melancolia e as possibilidades do novo atiçaram minha imaginação e me levaram às artes muito cedo. Aos 9 anos, queria ser escritor. Até cheguei ganhar um prêmio, aos 15 anos, da biblioteca do INL, o Instituto Nacional do Livro (risos). Mas, nessa época, começaram as bandas de rock e resolvi ser músico. Tentei sem sucesso fazer bandas de rock, até de jazz, mas nada...
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Daí veio cinema?
Por coincidência, aconteceram fatos marcantes nesses tempos. Fui a uma festa de aniversário de um amigo, e vi que o pai filmava com uma câmera importada VHS. Aquilo me impressionou, porque percebi alguém tendo uma câmera em casa: era algo raro e ainda mais filmar o cotidiano. Depois, já estudando no Marista — no qual minha mãe dava aula —, descobri que eles tinham uma câmera e ilha de edição VHS. Tentei adentrar lá e descobrir como fazia. Por fim, meu irmão me levou a uma mostra de cinema fantástico, promovida pelo José Damata (no Cine Brasília). Não ia muito ao cinema, via filmes basicamente pela tevê, e aquele momento abriu minha mente. Estar em uma sala escura, imerso de imagem e sons, vendo história bastante imaginativas, pra mim era algo próximo à dinâmica dos sonhos que era fascinado. Descobri que a UnB tinha um dos poucos cursos de cinema do país na época. Escolhi minha profissão aos 16 anos. Minha família estranhou bastante. Mas fui atrás de cursos, saber quem fazia, e consegui entrar no curso exatamente na época que o governo Collor acabou com cinema brasileiro.
Que lugares e pessoas solidificaram a tua formação?
Lugares, vários. Dos cinemas: Cine Brasília, Cine Academia e Cultura Inglesa. Havia ainda as idas às embaixadas pra ver filmes e algumas festas. O Conic foi onde fiz meu primeiro longa (Subterrâneos, 2003), mas, sem dúvida, a UnB foi fundamental para minha formação e a convivência com colegas e professores. Citar nomes é sempre complicado, por esquecer alguém, mas, tínhamos uma turma de alunos muito pequena. Quatro alunos. E aí tinha agregados ao curso, dentro e fora da UnB. André Luis da Cunha, Alfredo Viana, Bento Viana, Rosa Menezes, Murilo Grossi, Clarice Cardell, André Lavenere, René Sampaio, Chico Bororo, Cibele Amaral e Ricardo Pinelli, entre vários. Houve professores fundamentais pra minha formação: Luis Humberto, Regina Calazaens, José Luiz Braga, Clara Alvim, Nelson Pereira dos Santos, que foi meu orientador no meu filme de formatura, e estar num set dele foi uma segunda faculdade, e, o que considero meu mestre: Armando Bulcão. Me deu as primeiras chances.Viu meu potencial e minhas falhas, me orientou.
Qual a sua memória mais afetiva com a cidade?
Um lugar que sempre me fascinou em Brasília foi o Eixão, pois, como andava muito a pé, tinha que atravessar quase todo dia. Uma avenida larga que cruza boa parte da cidade — você não vê o final dela, a vista termina no horizonte, e atravessá-lo é quase uma experiência espiritual. Para poder ir e vir, enfrentar carros, passagens subterrâneas em uma avenida com dimensão não humana, com um grande espaço no meio, em que você pode ficar entre os carros, às vezes, cruzar com pessoas. Um ato cotidiano que se torna um desafio. Já senti muita solidão, opressão, esperança, medo, coragem (risos) e epifanias nesse ato que devia ser tão simples.
O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro definiu o que na sua vida?
O festival foi importante, sem dúvida, para minha formação e para minha carreira. Ter ganhado, com 5 Filmes Estrangeiros (1997), e a simples exibição do filme foram marcos na vida. Mas não só o Festival de Brasília, o festival internacional que existia no Cine Academia, que promoveu intercâmbios valiosos. Vieram cineastas como Nicolas Winding Refn, Shin’ya Tsukamoto, Amos Gittai, entre outros. Uma experiência que o BIFF (Brasília Internacional Film Festival) também implanta e que é muito importante para que a cidade assuma sua vocação cosmopolita.
O que Brasília te deu e que ninguém vai tirar?
A pergunta me soa muito intensa (risos). Nada é permanente na vida. Mas, penso que essa vontade de ampliar horizonte, ter uma visão horizontal do mundo, se entender pela busca do outro se deve muito aos meus primeiros anos de vida em Brasília.
A cidade virou símbolo de quê?
Não consigo definir Brasília, mesmo porque toda cidade é dinâmica e, uma cidade jovem, mais ainda. Além disso, é preciso também entender a cidade pelas regiões administrativas, nas quais tantas coisas interessantes acontecem. Brasília precisa buscar a diversidade e inovação, essa é, para mim, sua natureza. Resumir a cidade a seus símbolos clichês, ao Plano Piloto, ao Congresso, é uma preguiça intelectual que vem cada vez mais assolando o país.
Você trabalhou temas como isolamento (Meu mundo em perigo) e, claro, pontuou filmes relacionados ao coletivo, à agregação (A concepção). Ao longo dos tempos, acha que Brasília removeu a tarja do individualismo exacerbado?
O problema do individualismo é universal. Brasília agrava isso, por causa da arquitetura de grandes espaços, que foi usada para segregar, numa cultura autoritária. Além disso, por ter uma parte grande da população, que é sazonal, logo existe um descompromisso natural com a cidade, e, até onde sei, boa parte dessa população veio, desde da criação, para o bem ou para o mal, por causa de oportunidades, dinheiro.
Como tem percebido o momento da quarentena? A arte se faz mais cotidiana na vida das pessoas nessa era?
É um momento de reclusão para repensarmos o mundo e fazer uma metanoia. Tenho me dedicado a cuidar e ajudar, como posso, enquanto estou em reflexão e terminando as montagens dos projetos filmados (Auto da mentira, Alemão 2, As verdades e O pastor e o guerrilheiro). Ainda tem a volta da montagem de Aurora, projeto que fiz com Rodrigo Teixeira, um documentário sobre a artista plástica Rita Wainer. Tudo de casa. Fique em casa, aliás. Acho que, hoje, pesa a arte que serve para criar cenários, para entender o mundo, problematizar questões e se revela um braço importante para preparar o espírito. De fato tem que ser repensada: como ela pode ser feita agora, porque esse tempo vai exigir de todos nós uma grande mudança social, cultural, econômica...