Ator consagrado e diretor de cinema, à frente dos documentários Esse viver ninguém me tira e o recente Partida (lançado nas plataformas de streaming), o paulistano Caco Ciocler, numa conversa, se mostra influenciado e em sintonia com as transformações impostas pela era da atual pandemia. Para além de se apresentar como um privilegiado (que pode ficar em casa, e disposto a transformá-la), ele externa atitudes solidárias alinhadas aos papéis de médico atualmente propostos por duas obras: a novela Novo mundo e a segunda temporada da série Unidade básica.
Com Partida — feito sem lei de incentivo ou patrocínio —, um projeto assentado em conceitos de utopia e democracia, Caco deixa ainda entrever a sintonia com o feminismo. Na fita pesa a afirmação do pensamento político de uma atriz (Georgette Fadel), que luta por ideais de fraternidade. “A grande força do filme é uma mulher. Filmei com duas diretoras de fotografia mulheres. Mostramos ainda a jornada de uma mãe que trabalha e tem que se dividir, na criação de uma filha. Aliás, vejo que, como homem, não tenho nada a falar sobre feminismo. Tenho apenas a ouvir e a aprender com as mulheres, sobre o feminismo. Esse é nosso papel no momento”, avalia.
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Precavido com a covid-19; aos 48 anos, paciente com o momento e preocupado com o outro — assim é Caco Ciocler que, mesmo confrontando correntes de intolerância, reforça, em entrevista ao Correio, a garra pela profissão: “Nossas possibilidades não banais de existência trazem o retorno integral de sentido para a arte”. Confira!
Qual a origem da inquietação e como apostou num esquema de produção completamente independente?
Pensava com um casal de amigos onde passaríamos o Réveillon 2019. Pretendíamos uma viagem simples, mas diferente. Pensamos no Uruguai que é sempre um destino muito legal e barato como opção de última hora. No meio de um banho, me veio a ideia de tentar passar a virada com o (ex-presidente) Pepe Mujica: pesou a lenda de que o Mujica morava num lugar isolado e recebia as pessoas interessadas em vê-lo. Obviamente, minha ideia foi muito mal recebida (risos). Ninguém me levou muito a sério. Nove meses depois, na época das eleições, metade do Brasil estava muito esperançoso, a outra metade muito assustada, e eu ensaiava uma peça com a Georgette Fadel (atriz de Partida) e ela soltou que ela ia se candidatar à Presidência da República. Ela estava assustada, pelos discursos do momento. Ela é homossexual, mulher, comunista, atriz, então, ela estava muito sensível aos ataques. A premissa da candidatura misturava um pouco realidade com ficção, já que ela se propunha com muita veemência (à candidatura). Ao mesmo tempo, a gente ficava em dúvida. Apostamos no simbolismo de Georgette passar o Réveillon nos braços de um afeto (o Mujica), de uma referência política dela.
Onde houve preponderância de ficção, num filme dito documental?
A prerrogativa passeava no meio, entre ficção e realidade. Isso foi mantido pelo filme inteiro, por questões simples como a de sermos todos atores, no filme. Pedi isso para eles: para que fossem coautores do longa. Tudo o que acontecesse e não fosse filmado, não serviria ao filme. Orientei para que eles fizessem o que quisessem: caso (ou não) a Georgette levasse a candidatura até o fim. Ela estava livre para fazer uma revolução: colocasse quem ela quisesse para dentro do ônibus. Ela poderia até quebrar o ônibus, se quisesse. Num certo sentido, todo o filme é ficcional: todos tinham o conhecimento de que as câmeras estariam ligadas. Todo impulso real, imediatamente, era transformado num impulso artístico. Foram experiências improvisadas e calcadas no repertório individual de cada participante. Embates vieram a favor da dramaturgia do filme. Era o nosso jogo.
Teu cinema se afina em utopias. O brasileiro as perdeu de vista?
O Brasil sempre viveu de utopia. E o brasileiro sempre acreditou que não precisasse fazer nada. Fui criado nisso: vendo o Brasil como o país do futuro. Ficavam aqui as praias mais lindas do mundo, tinha o povo mais feliz de todos, e uma hora as pessoas perceberiam isso, uma hora o Brasil seria a grande referência do mundo, da alegria, da pluralidade. Vivemos acreditando nessa utopia, mas fazendo pouco, na prática, para que ela se concretizasse. Hoje, nos deparamos com um povo que não é o mais feliz do mundo. O Brasil está careta, preconceituoso, pouco aberto às diferenças. Um Brasil que desconhece sua história e que pouco a respeita. Não conhece seus heróis. Deparamos com a maioria dos brasileiros que passa fome e é analfabeta, sem acesso à saúde e educação. Desigualdades, violência. Aquela utopia se quebrou. Estávamos passivos, diante daquela utopia. Nós somos os sujeitos ativos, se quisermos um país melhor. O Partida fala disso: a utopia é o farol, mas o que importa é o percurso em direção a ela. Vemos a realidade, dura. Pela sobrevivência, seremos obrigados a criar novas utopias.
O que mudou na sua vida, com a pandemia?
De valores e experiência? Bom, sou um privilegiado: posso me dar ao luxo de cumprir o isolamento proposto pela Organização Mundial de Saúde, em casa. O que teria mudado de comportamento? Bom, a solidão e o isolamento mudam muita coisa, desde uma conexão muito forte com a minha casa, física. Tinha minha casa como lugar de passagem. Descobri que ela tinha uma série de questões técnicas pendentes, desde canos quebrados (risos), fios e tomadas necessitando de consertos, paredes a serem pintadas, madeiras pedindo verniz... Estou em conexão profunda com a minha casa. Isso mudou muito a relação que tenho com Sandra, a pessoa que trabalha lá em casa, há mais de dez anos. Mudou absolutamente a minha relação com ela. Entendi, na pele, qual é o trabalho de uma pessoa que limpa a casa dos outros, que cuida. Ressignificou minha relação com ela, que já era maravilhosa, e avançou para outro patamar de respeito, de salário. É um trabalho absolutamente exaustivo, cruel e é minha obrigação e obrigação de todo mundo que tem uma funcionária que trabalha em casa, facilitar esse trabalho, dar melhores condições. Com a pandemia, a gente voltou a pensar no tempo: minha vida era muito corrida. Caminhávamos para uma sociedade com muitas certezas, uma sociedade meio binária, né?: isso ou aquilo, direita ou esquerda... A arte não tinha muito espaço nesse lugar: arte nasce nos intervalos entre as certezas. Voltamos a conviver com as incertezas, com a finitude e o sagrado, a conviver com possibilidades não banais de existência. Possibilidades não banais de existência trazem o retorno integral de sentido para a arte.
Qual o patamar da arte, hoje em dia?
A arte é maior do que o patamar atual, do que o governo atual. Arte independe e é intrínseca à inquietação da alma humana. Não falo de produto cultural: falo de arte. Ninguém escolhe ser artista; você pode até escolher ser produto cultural. Você pode escolher “querer” ser famoso. Artistas verdadeiros não escolhem ser artistas. Eles têm uma necessidade incontrolável de expressão e de pensar possibilidades menos cotidianas. São sempre os grandes faróis da humanidade, em pensamento e sensibilidade. Isso nunca vai sumir. A necessidade que as pessoas têm de arte sempre retorna. No mundo com intransigência, em que pessoas precisam correr, caso contrário não conseguem comer, a arte fica relegada a segundo plano. Não é a arte que perdeu potência: é o ser humano que perdeu. O ser humano é que está emburrecendo, ao achar que não precisa de arte. Pensa isso, e vai tomar antidepressivo, vai tomar remédio para dormir, vai tomar comprimido para emagrecer. Azar o dele. Existem governos que têm tentativa explícita de achatamento da arte. Por serem simplistas, querem tomar o mundo como espelho de si próprios. E vem o “desserviço” da arte. Daí, pelo poder, atacam os artistas. Governos autoritários de esquerda ou de direita correm para apontar o que é certo ou errado na arte. Tentam liquidar a pluralidade.
Além da arte, você tem investido em correntes solidárias, diante dos efeitos do novo coronavírus...
Tive uma preocupação muito grande em achar soluções para ajudar as pessoas. Com amigos da Itália e da Espanha, me adiantei na preparação para o isolamento, e mobilizei auxílios. Propus, em vídeo, que dessemos uma gorjeta gorda pros entregadores, que a gente oferecesse máscaras e luvas. No dia seguinte, recebi correntes de pedidos, vi que os profissionais liberais não teriam como resolver as vidas. Comecei a fazer vídeos propondo soluções. Sugeri que a gente começasse a dar 10% sempre que a gente pedisse uma comida. No meio disso, recebi dois vídeos de empresários com posição absolutamente oposta. Vi que um deles fazia parte da lista Forbes, entre as pessoas mais ricas do mundo, e criei o trocadilho com a lista Fortes. Pesquisei o lucro líquido de 2019 dos empresários: dava para pagar R$ 1 mil, durante três meses para trinta milhões de brasileiros.! Motivei empresário a trocarem prioridades. Estimulei doações e, em contrapartida, disponibilizei minhas redes sociais pra divulgar toda e qualquer ação significativa do empresariado consciente. Daí derivou a lista Fortes Brasil, campanha destinada a salvar vidas de funcionários, de consumidores, corresponsáveis pelo lucro líquido de uma empresa.
Atualmente, você representa dois médicos, tanto em novela (Novo mundo) quanto em série (Unidade básica, no Universal Channel).Como se descolaram do padrão americano na série, e como os médicos reais te inspiram?
Unidade Básica está na segunda temporada. Tivemos o esforço de sair dos padrões das séries médicas americanas, e que não foi mérito meu. A série foi criada ao se apostar numa linguagem de ruptura de ingredientes comuns a todas as séries médicas. Tiraram ingredientes como adrenalina, as emergências, as doenças raras com soluções raras, os médicos sempre bem-sucedidos e o teor de sensualidade. Uma corrente nova da medicina que percebe as séries americanas como nocivas na formação dos novos profissionais de saúde movidos pelo êxito financeiro, pelo ambiente sofisticado e com um cotidiano repleto de descobertas científicas semanais. Nossa série trata da realidade das unidades básicas de saúde, absolutamente de modo fiel. Temos gigantes retornos e respaldos da classe médica. A criadora da série trabalha no meio, como defensora da medicina de família, e escreveu uma tese sobre a série. Tivemos reuniões com a intelectualidade que pensa no sistema de saúde público. Essa série é usada nas universidades como referência. Acho a série extremamente corajosa, atual e absolutamente fidedigna ao momento atual. Enxergo os profissionais de saúde como a maioria dos brasileiros nesse momento: são heróis de guerra, são soldados que vão para a linha de batalha. Arriscam as vidas deles, diariamente.