Entrar no seleto rol de séries que fizeram história na televisão mundial é um desafio. Isso porque a quantidade de produções seriadas que estreiam por ano é imensa. Mas, vez ou outra, seriados se destacam, normalmente por fatores de ineditismo. Isso foi o que aconteceu com a série alemã Dark, que estreou em 2017 no serviço de streaming Netflix e encerra a narrativa no sábado, quando estreia os oito novos episódios da terceira temporada.
Neste ano, a produção foi considerada a melhor série da Netflix, batendo, inclusive, Stranger things. O título foi escolhido em votação popular no site Rotten Tomatoes, que agrega críticas sobre filmes e séries para dar vereditos sobre as produções. Mais de 2,5 milhões de usuários votaram e 80% dos votantes escolheram Dark para o título de melhor produção do serviço de streaming.
O primeiro ponto em relação ao sucesso de Dark é exatamente a origem. A produção foi uma das primeiras fora do território dos Estados Unidos e da Inglaterra, maiores produtores do formato audiovisual, a ser produzida pela Netflix. A trama é 100% alemã: criada, falada, protagonizada e gravada na Alemanha.
[SAIBAMAIS]Outro aspecto que a tornou num grande fenômeno foi o enredo em si. Criada por Baran bo Odar e Jantje Friese, a série gira em torno do misterioso desaparecimento de jovens na proximidade de uma usina na cidade de Widen. Fato que aconteceu de forma parecida 33 anos antes. À primeira vista, o seriado lembrou outro hit da Netflix, Stranger things, dos irmãos Duffer. No entanto, basta adentrar na narrativa para perceber que são produções diferentes, já que Dark, em sua primeira temporada, tem três linhas temporais exploradas numa complexa e instigante história encabeçada pelos protagonistas Jonas (Louis Hofmann) e Martha (Lisa Vicari).
“Dark apresenta um ritmo diferente, mais lento, pausado, com uma construção narrativa que exige atenção de quem entra no jogo temporal. Assim como os personagens, nós também nos emaranhamos na trama espaço-temporal, desafiando nossa compreensão. Nós entramos na caverna de Dark com os personagens, fazendo-nos as mesmas perguntas filosóficas: 'quem sou, de onde vim, para onde vou'”. Talvez esse seja o segredo do sucesso de Dark”, avalia Sandra Trabucco Valenzuela, professora doutora da Fatec/FAM e estudiosa de Dark, tendo publicado artigos sobre a série, como A fragmentação na série Dark: o ser, o espaço e o tempo; e A série Dark: aspectos literários e filosóficos na leitura do espaço-tempo.
Referências pops
Além disso, Dark trabalha questões filosóficas, científicas, históricas e tem muita referência de cultura pop dialogando com outras produções que fizeram muito sucesso. “Dark exige um receptor curioso, com repertório que vai da cultura pop alemã a questões histórico-filosóficas relativas ao pós-guerra, da física à publicidade da década de 1980, de Chernobil à literatura clássica alemã, da mitologia grega ao cristianismo, da ficção ciberpunk (dieselpunk, steampunk e pós-punk) a Shakespeare. Nenhuma resposta é fácil, a narrativa é um labirinto envolvente e sedutor, repleta de fios deixados como pistas ou, talvez, falsas pistas”, completa Sandra.
Mais um ponto positivo para Dark é o modo de distribuição da Netflix, de liberar, em sua maioria, todos os episódios de uma temporada juntos, para a famosa maratona. “Fãs de séries sabem como é difícil esperar um ano pela próxima temporada, porém, é mais difícil ainda aguardar o horário fixo da próxima semana, como aconteceu, por exemplo, com os episódios de Game of thrones ou Breaking bad. Para o público, é muito melhor disponibilizar a série na íntegra, pois isso permite controlar o tempo de que se dispõe diante da TV, escolhendo assistir a um episódio inteiro ou parte dele, ou mesmo uma temporada inteira”, afirma a estudiosa.
Nas duas primeiras temporadas de Dark, a série se dedica a explicar as conexões estranhas e constantes entre quatro famílias moradoras do município de Widen: Doppler, Nielsen, Kahnwald e Tiedelmann. Tudo isso a partir de um conceito bastante explorado no audiovisual: o espaço-tempo. Por isso, a produção insiste em frases como “tudo está conectado” e “o fim é o começo, e o começo é o fim”. Na terceira temporada, Dark abre ainda mais o leque, chegando a outros conceitos comuns à ficção científica, em uma conclusão pertinente e que explica a maior parte dos conflitos levantados nos três anos de série.
O consistente final de Dark — a reportagem teve acesso aos oito episódios que serão disponibilizados na madrugada de amanhã na Netflix — é também a confirmação de que a trama ficará para a história da televisão atual, a tevê feita no streaming.
Relembre outras séries que fizeram história
Três perguntas // Sandra Trabucco Valenzuela
Dark chegou à Netflix chamando atenção primeiramente por ser uma aposta do streaming de produção alemã e desde o lançamento se mostrou um fenômeno. A que atribui a boa repercussão da série?
Quando a série alemã foi lançada em 1º de dezembro de 2017, num primeiro momento ela se parecia demais a outra produção norte-americana Netflix, Stranger things, que estreiou em 15 de julho de 2016. O tema do desaparecimento de uma criança parecia batido, uma usina misteriosa construída na cidade e com cenários da década de 1980 também. No entanto, as semelhanças param por aí.
Dark é uma série alemã que apresenta um ritmo diferente, mais lento, pausado, com uma construção narrativa que exige atenção de quem entra no jogo temporal. Assim como os personagens, nós também nos emaranhamos na trama espaço-temporal, desafiando nossa compreensão. Nós entramos na caverna de Dark juntamente com os personagens, fazendo-nos as mesmas perguntas filosóficas: “quem sou, de onde vim, para onde vou”. Talvez esse seja o segredo do sucesso de Dark.
Dark exige um receptor curioso, com repertório que vai da cultura pop alemã a questões histórico-filosóficas relativas ao pós-guerra, da física à publicidade da década de 1980, de Chernobil à literatura clássica alemã, da mitologia grega ao cristianismo, da ficção ciberpunk (dieselpunk, steampunk e pós-punk) a Shakespeare. Nenhuma resposta é fácil, a narrativa é um labirinto envolvente e sedutor, repleta de fios deixados como pistas ou, talvez, falsas pistas.
Mesmo com uma trama complexa e uma língua "incomum", a série vingou. Acredita que o modo de disponibilização (por temporada completa) e o maior consumo de produções de outros países foram essenciais para esse sucesso?
Disponibilizar uma temporada completa é muito mais eficiente do que a exibição por episódios lançados semanalmente, mesmo porque quando a série vai ao ar já completa, há um controle absoluto da edição e de possíveis falhas que podem ocorrer ao longo do processo de produção. Para o público, é muito melhor disponibilizar a série na íntegra, pois isso permite controlar o tempo de que se dispõe diante da TV, escolhendo assistir a um episódio inteiro ou parte dele, ou mesmo uma temporada inteira.
Nestes tempos de pandemia e afastamento social, assistir às séries tem sido uma opção de entretenimento muito importante, afinal de contas, como permanecemos muito tempo casa, essa é uma forma de interação não só com a família, mas também com os amigos, abrindo espaço para debates em grupos de interesse afins em redes sociais.
Hoje, assistir às séries é também participar da cultura pop, que une pessoas de diferentes idades e interesses os mais diversos. Maratonar séries é uma prática cotidiana. Fãs de séries sabem como é difícil esperar um ano pela próxima temporada, porém, é mais difícil ainda aguardar o horário fixo da próxima semana, como aconteceu, por exemplo, com os episódios de Game of thrones ou Breaking bad. Rever uma temporada inteira, acompanhando alguém que não a tenha visto ainda, é um programa de lazer que une as pessoas, é uma forma de compartilhar de algo prazeroso.
O investimento na realização de séries tem permitido o acesso a audiovisuais de muitos países, cujas produções ficavam restritas a um público mais ligado ao cinema, a festivais e mostras internacionais.
Qual são as suas expectativas para a terceira temporada?
A possível solução da trama foi dada logo no início da série: o fio de Ariadne. No início da trama, vemos a personagem Martha Nielsen representando uma peça de teatro em que ela é Ariadne; portanto, ela é a personagem central capaz de resolver o problema do labirinto espaço-temporal criado pelas viagens no tempo, pela proposição da seita criada pelo misterioso Adam (Adão), a Sic Mundus, que visa à criação de um novo mundo, e pelas tentativas de Jonas e Claudia de modificarem o rumo dos acontecimentos.
O fio de Ariadne se baseia no episódio mitológico do labirinto de Creta, quando Ariadne, filha do rei Minos, auxilia Teseu a vencer o Minotauro e depois conseguir sair do labirinto, utilizando, para isso, um novelo para marcar o caminho de volta.Teseu mata o Minotauro com uma espada e consegue sair. Na versão grega do mito de Ariadne, ela se torna companheira do deus Dioniso. O fio de Ariadne se apresenta como um forma lógica de resolver um dilema, um labirinto físico ou uma questão ética, acompanhando o caminho e retornando ao início se necessário, visto que nesse processo podem ocorrer eventos inesperados, como num labirinto ou quebra-cabeça.
Dark fala do tempo, do tempo de Kairós, que é o tempo de Deus (tempo não linear, um momento fugaz), de Chronos, o tempo dos homens (tempo linear, pontual), e o tempo de Aeon, o da eternidade, o tempo não mensurável, longo e duradouro.
Assim, de algum modo, é provável que Martha consiga trazer Jonas de volta do “ventre da baleia”, isto é, do labirinto em que ele se encontra. Jonas destruirá o Minotauro, mas talvez se sacrifique para restaurar o tempo em suas várias facetas.
No trailer da teceira e última temporada de Dark, Martha surge de capa amarela, como viajante do tempo, tomando o lugar de Jonas, talvez numa dimensão paralela, criada dentro desse labirinto produzido pelo retorno ao passado e as mudanças que isso provocaria.
A triquetra é o símbolo da série, portanto, ao final, ela deverá retornar ao início da primeira temporada. Nada, porém, é muito claro, ficando tudo no âmbito da possibilidade. É esperar para ver, ou melhor, maratonar.