A banda Coisa Nossa é uma das traduções do samba brasiliense. Desde o fim da década de 1970, o grupo anima o público com rodas de samba, músicas autorais e interpretações musicais de grandes nomes do gênero no Brasil. Marcelo Sena, vocalista do Coisa Nossa, é o convidado desta edição do Conversas Candangas e fala sobre a trajetória de vida pessoal e profissional.
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Brasília é uma capital conhecida pela diversidade cultural. No meio da música, o Coisa Nossa tem um importante papel para construir e consolidar o cenário do samba na cidade. Na época, Brasília tinha um contexto cultural do rock muito forte. Como foi chegar com o samba e conquistar tanto espaço?
A banda surgiu em outubro de 1979. Nós tínhamos de 15 a 18 anos e não tínhamos a mínima pretensão de conquistar nada, de conseguir um espaço no meio da música. Tudo começou como uma brincadeira: foram amigos que se juntaram para participar do festival Fico, do colégio Objetivo. Não tínhamos grandes pretensões, tínhamos a ideia de farrear. Mesmo sem ganhar o campeonato, tínhamos uma torcida, um grupo que gostava da banda. Começamos, então, a tocar em bares e botequins na W3. Assim, fomos, despretensiosamente, conquistando espaço na capital do rock, naquela época. Mas, que hoje é a capital da diversidade cultural. Naquela época não tinha internet e telefone celular para divulgar as apresentações. A comunicação era por carta, telegrama e por aviso boca-boca. Era uma época muito mais romântica e harmoniosa, pura. Era divertido anunciar as apresentações.
Naquela época, como era a manifestação do samba no Distrito Federal? Onde aconteciam os shows e rodas para celebrar o ritmo?
Costumo dizer que o samba, sempre no seu devido lugar, teve as altas, mas nunca as baixas. Do samba sai a bossa-nova, o pagode, o samba-choro, o samba-rock, o samba-de-partido-alto, samba-de-enredo, samba-de-breque e por aí vai. Para mim, o samba e os seus dissidentes são a raiz da música popular brasileira. As manifestações eram mais tímidas. Não tínhamos como divulgar de forma tão rápida e eficiente como hoje, mas era muito mais prazeroso. As rádios já tinham programações prontas, as grandes capitais que mandavam as músicas, e nós aceitávamos. As pessoas que vieram de outros estados trouxeram o samba, sempre foi uma mistura. Nos botecos e no Clube do Samba, as pessoas faziam rodas, já tinham grupos que trabalhavam com o estilo nos anos 1980. Como éramos menores de idade, fomos levados pelo Juizado de Menores várias vezes durante as apresentações, mas isso não parava a gente.
Você já teve a opção de ir para o Rio de Janeiro, a convite de nomes renomados da música brasileira. Porém, ficou em Brasília. Qual a sua relação com a cidade e o que ela representa para sua vida pessoal e carreira?
Comecei minha carreira ao longo dos anos 1980 e 1990, aqui em Brasília. Eu não quis ir para outro local porque o convite era apenas para mim, e não para o grupo e para minha família, então pensava sempre no coletivo. Me tirar daqui era muito difícil, as propostas não eram irrecusáveis e eu estava bem no meu lugar. Brasília, para mim, é minha. Sinto como se a minha casa fosse a Vila Planalto e o DF todo fosse o meu quintal. Nós andávamos os quatro cantos da cidade, de ônibus. Íamos muito para as cidades em volta de Brasília, nos apresentar. Aqui eu tenho meus amigos, família. Criei meus filhos e neta. Brasília é paz, é um lugar com uma incrível diversidade cultural, é tudo pra mim. Cada pedacinho do DF é parte do meu habitat.
Em quatro décadas da banda, qual foi um momento marcante para o grupo? E qual a mensagem que vocês buscam passar para o público brasiliense?
Não consigo dizer um único momento marcante. Desde o primeiro ano novo, em Brasília, que tocamos, vivemos experiências que ficam para sempre na memória. A participação em apresentações de artistas que são tidos como ídolos para nós, traz boas lembranças, shows em outros estados, festas importantes… Eu sempre tive uma base muito forte em casa, companheirismo, amizade e respeito. Então, aproveitei a música para passar essas mensagens, para difundir o que minha família me passava por toda minha vida. Nós vivemos sentimentos e é o que precisamos passar para o nosso público: gratidão por tudo isso e o amor em suas várias facetas e formas.
Na época da criação da banda, quais eram as formas de divulgação das músicas?
A forma de divulgação, quando não com trabalhos com LP ou compactos, era por meio de rádios, shows e panfletos. Nem se imaginava que teria a internet para auxiliar os artistas. Naquela época era muito mais difícil, mas era poético, era conquistado. Lembro que festivais ajudavam muito nessa divulgação também, como eventos escolares. Acho que os artistas que passaram por essa fase e conseguiram manter os ritmos, a cultura, devem ser agradecidos pelo público, porque era um processo bem mais delicado do que hoje em dia.
Qual a importância da Acadêmicos da Asa Norte e da Aruc para o crescimento da banda? E qual a importância para a capital federal?
Quando eu era jovem, comecei a tocar percussão lá no Acadêmicos. Era perto da minha casa, na Vila Planalto. Íamos para lá para ouvir os ensaios e aprender mais sobre os instrumentos. Até desfilei pela escola de samba chamada Turma do Barril, que ensaiava no espaço. Depois de um tempo, veio a Aruc, que foi um divisor de águas para o Coisa Nossa. Foi o pontapé inicial para o sucesso da banda. Já tocávamos em grandes bares da cidade, mas o presidente Zico, da Aruc naquela época e toda a presidência, nos chamou para um projeto com artistas cariocas. Não deu tão certo o evento, para nós. Mas, tocar e abrir shows de grandes artistas mudou o seguimento do nosso grupo. Assim, começamos a ganhar reconhecimento por Brasília afora. Além disso, a Aruc tem um importantíssimo papel para a cidade pela quantidade de projetos sociais eficientes e por fomentar tanto a cultura do samba no Distrito Federal.
Como estavam os projetos da banda antes da pandemia?
Nós estávamos com o processo de seleção de música para começarmos a gravar um novo CD. A proposta é que a gravação fosse em julho, com, inclusive três músicas inéditas. O objetivo desse novo disco seria para alegrar o dia de alguém. Quando a pessoa acordasse meio triste, colocaria o CD do Coisa Nossa para tocar. Também queríamos começar uma nova turnê nacional, mas essa questão fica para depois.
Qual foi a maneira que encontraram de se reinventar em meio ao isolamento social?
Nós, assim como vários outros artistas, temos investido mais em rede social. Fazemos lives caseiras e, às vezes, mais profissionais. Estivemos ao vivo no canal do Leandro Brito no YouTube. Foi uma experiência fantástica, atingimos uma marca impressionante, acima de 41 mil visualizações. Se não fossem os artistas, a cultura, as lives, os filmes, neste momento, como estariam todas as pessoas isoladas? Penso que nossos representantes políticos podem, agora, olhar com mais respeito para quem trabalha com arte.
Em 2018, você foi diagnosticado com câncer de próstata, já em estado de metástase. Nesse período, você continuou fazendo apresentações com a banda e levando alegria para o seu público. Como foi a superação neste momento?
Quando eu soube do diagnóstico final, de metástase, eu me apavorei, afinal era algo desconhecido. Eu comecei, então, a pesquisar muito, ir em busca de conhecimento. Conheci uma terapia chamada Terapia de Jerson, era natural. Fiz esse tratamento junto à quimioterapia e isso me salvou. Me renovei no âmbito espiritual, físico, alimentar… Me sinto em remissão, não que estou curado. Afinal, as células têm memórias. A autoestima anda de mãos dadas com a imunidade. Eu trabalhei muito o bem-estar, fiz dança de salão todas as noites com a minha esposa. Trabalhei a reeducação alimentar e mantive minha imunidade sempre alta. A minha música é o que me deixava mais feliz. As mensagens de carinho, de força. Mesmo com a doença, estar nos palcos, nos shows.
Após a cura da doença, você criou um instituto para apoiar pessoas que passam por situação semelhante. Como funciona esse projeto?
Eu me questionei o porquê eu passei por aquilo. E eu, como amante da vida, sabia que precisava criar algo que ajudasse um número maior de pessoas a se curar, a não desistir. Então, quando cheguei a essa conclusão, sobre a minha missão, decidi que esse era o legado que queria deixar. Criei o Instituto de Holística do Amor, junto à minha esposa. A intenção é passar todo o conhecimento que adquirimos nesse percurso e ajudar as pessoas a manter a imunidade e a autoestima lá em cima. Acreditamos que trabalhar o corpo com dança, pilates e outros exercícios ajuda muito. Além disso, trabalhamos também o psicológico e a nutrição, que são de extrema importância nesse momento. Não mexemos com o lado médico, mas ajudamos gratuitamente muitas pessoas. Contamos com muitos voluntários e doações.
*Estagiária sob supervisão de Nahima Maciel