A atriz Maria Alice Vergueiro, 85 anos, não tinha medo da morte, mas dizia ter medo, sim, de morrer, citando versos da música de Gilberto Gil da Banda larga cordel (2008). Mesmo assim, a enfrentou antes mesmo da chegada, que ocorreu ontem, após não resistir a uma broncoaspiração, no Hospital das Clínicas de São Paulo, onde estava internada desde 27 maio com pneumonia e insuficiência respiratória.
E esse enfrentamento foi onde mais gostava: nos palcos. Entre 2015 e 2016 encenou a própria morte no espetáculo Why the horse?, criado e dirigido por ela, em parceria com os integrantes do grupo Pândega, idealizado pela mesma. A montagem passou pela capital federal há quatro anos na 19ª edição do Palco Giratório. A peça foi a última de Maria Alice, que teve que se afastar do ofício por conta da dificuldade na fala em função do Parkinson.
Saiba Mais
Why the horse? surgiu em meio ao período em que Maria Alice Vergueiro esteva ligada a SP Escola de Teatro e a Cia Satyros, um dos muitos grupos ao qual participou durante a trajetória nas artes cênicas. A montagem surgiu de um projeto de residência artística e de uma pesquisa de dois anos. “Ela era um monstro. Maria era uma atriz excepcional. Toda a estruturação da peça partiu dela, que convidou, por meio da autoficção, as pessoas a assistirem a morte dela”, lembra o ator e escritor Ivam Cabral, do grupo Satyros, e o primeiro a divulgar a morte de Maria Alice Vergueiro nas redes sociais.
Trajetória
Desde a estreia no teatro em 1962 no espetáculo Mandrágora, sob a direção de Augusto Boal, Maria Alice Vergueiro não mais deixou os palcos. Transitou entre diferentes grupos, como o Oficina, o Arena e o Ornitorrinco, que ela participou da criação. Nos últimos anos se aproximou dos novos grupos mostrando que não tinha limitações para a idade. Pelo contrário, se dava muito bem com os mais jovens. “Nos últimos 10 anos, a história dela meio que se borra com a nossa do Satyros e da SP Escola de Teatro. Ela dirigiu um espetáculo para gente e também ajudou no processo da inserção da pedagogia na escola. Ela foi muito importante para estruturar um modelo pedagógico que tinha esse experimento de pesquisa, que a interessava muito”.
Antes de se dedicar às artes cênicas, a paulista, nascida em 19 de janeiro de 1935 em uma família tradicional de São Paulo, seguiu à risca os mandamentos para os quais foi criada: casou com Sílvio de Almeida, teve dois filhos — Maria Sílvia e Roberto Vergueiro de Almeida —, e se formou em pedagogia. Depois de cumprir a missão de ser uma dona de casa, descobriu o teatro e como destaca Zé Celso se desbundou e viveu a arte intensamente: “Ela foi uma pessoa extraordinária. Sobreviveu a vida muito bem. Era de uma família tradicional, se casou, teve filhos e depois, no teatro, desbundou, viveu intensamente. Enumerei 30 loucuras que ela fez”. Teve passagem na televisão e no cinema em produções como Sassaricando (1987), Bebê a bordo (1988), Maldita coincidência (1979) e Perfume de Gardênia (1992).
Esse modo engraçado e desbocado foi o que levou Maria Alice Vergueiro a viralizar, em 2006, na internet, com o curta-metragem Tapa na pantera, de Esmir Filho, Mariana Bastos e Rafael Gomes. No vídeo, ela aparece falando as experiências de 30 anos com a maconha. “Ela ria e assumia esse lugar de força da internet. Mas ela vem muito antes disso. Ela foi fundamental no Oficina, uma das fundadoras do Ornitorrinco, criou o Pândega e o inaugurou com o espetáculo As três velhas, que é uma profunda pesquisa de experiência e autoficção. É um dos espetáculos mais importantes do teatro”, completa Cabral.
Brasília
A última passagem pela capital federal foi exatamente em 2016 com Why the horse?, quando ficou uma temporada na cidade. O diretor Hugo Rodas, radicado no Distrito Federal, lembra com carinho esse momento, que classifica como “memorável” para a história da cidade e do teatro brasileiro. “Ela foi uma companheira incrível para mim nos anos 1980, tínhamos uma união muito forte na época. Ela é um dos pilares do teatro no Brasil, participou de grandes companhias como o Teatro Oficina. Uma mulher com uma trajetória linda, uma energia impressionante e uma força inacreditável, que eu não consigo explicar. Me sentia como um irmão dela”, completa.
Naquele mesmo ano foi premiada em diversos festivais de cinema, incluindo o 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e o Festival de Gramado, pela participação no curta-metragem brasiliense Rosinha, dirigido por Gui Campos. Na produção estavam em pauta o amor e a sexualidade na terceira idade.
João Antônio foi um dos atores que dividiram espaço com Maria na fita. “Foi uma honra muito grande contracenar com ela em Rosinha, porque Maria Alice já era um nome extraordinário no teatro e no cinema. Eu já era fã incondicional e ter convivido com ela foi um prazer imenso. Ver aquela atriz com todas as limitações que ela tinha, já naquele momento, em cadeira de rodas, com os dois joelhos afetados, foi uma lição de vida, uma lição de arte”, comenta.
João Antônio foi um dos atores que dividiram espaço com Maria na fita. “Foi uma honra muito grande contracenar com ela em Rosinha, porque Maria Alice já era um nome extraordinário no teatro e no cinema. Eu já era fã incondicional e ter convivido com ela foi um prazer imenso. Ver aquela atriz com todas as limitações que ela tinha, já naquele momento, em cadeira de rodas, com os dois joelhos afetados, foi uma lição de vida, uma lição de arte”, comenta.
Repercussão
A morte de Maria Alice Vergueiro repercutiu entre a classe artística e também entre a cultura em geral. A Secretaria de Cultura e Economia Criativa de São Paulo lamentou em nota. O espaço Itaú Cultural publicou nota de pesar e avisou que reativaria o episódio da série Camarim em cena com depoimento de Maria Alice Vergueiro no site oficial.
“Ela marcou gerações com as suas atuações. Na minha, não há com não fazer referência ao Teatro Ornitorrinco, em peças como O doente imaginário, de Molière, entre as apresentações históricas deste grupo. Definitivamente, o vigor e a força reflexiva de Maria Alice farão falta ao Brasil em que a arte e a cultura são especialmente determinantes para a transformação e o desenvolvimento do país”, afirma Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, na nota.
A família não se pronunciou sobre o enterro. Mas, como tem acontecido em outros casos de personalidades, a informação não deve ser divulgada para evitar aglomeração por conta da pandemia do novo coronavírus.
*Colaboraram Geovana Melo e Vinícius Veloso, estagiários sob supervisão de Igor Silveira
*Colaboraram Geovana Melo e Vinícius Veloso, estagiários sob supervisão de Igor Silveira