Fabrício Carpinejar está em quarentena há mais de 50 dias. Só sai de casa para ir ao mercado, na esquina da rua em que mora com a mulher, em Belo Horizonte. Às vezes, vai à garagem para falar ao telefone. De dentro do carro, ele concedeu a entrevista ao Correio. Esse recurso, repara, é o único meio de se isolar para muitos profissionais em quarentena. Carpinejar tem amigos psicanalistas que estão atendendo aos clientes de dentro do carro, na garagem. São maneiras de encarar o isolamento necessário ao combate da pandemia: com a família toda confinada, nem sempre é possível ter privacidade. Os novos modos de vida viraram reflexão e Carpinejar decidiu fazer delas um material concreto. Escrito em cerca de um mês, Colo, por favor! reúne aforismos e relatos autobiográficos sobre como o escritor está encarando os novos tempos.
Para o autor, ter um colo hoje é mais urgente do que abraços. “O que a gente mais sente falta é de um colo. Todo mundo fala em abraço, beijo, mas colo é a sensação ancestral de quanto a gente se sentia protegido enquanto alguém fazia a vigília no nosso lugar, o colo é quando a gente não precisa se preocupar porque tudo vai ficar bem”, diz, embora desconfie que nem tudo vá ficar bem após a pandemia, se houver “após”.
O colo como ele define no primeiro capítulo do livro, é o lugar mais parecido com o coração fora da nossa caixa torácica. “Eu gostaria de que, depois, a mesma higiene física que a gente tem agora fosse também emocional: desinfetar as preocupações, álcool em gel no pensamento, usar máscara no momento de raiva dentro de casa, ficar a meio metro de distância quando você está prestes a discutir. É preciso que a gente encontre a serenidade, que é esse equilíbrio de não levar tudo para o lado pessoal”, diz.
Ócio
Carpinejar conta que escreveu o livro tão rápido porque não tinha “outra coisa pra fazer”. Na introdução, ele explica que, àquela altura, havia no Brasil mais de 3 mil mortes em decorrência da covid-19. Hoje são mais de 10 mil. Cada capítulo abre com um aforismo que faz referência ao isolamento social e à pandemia. Em seguida, ele escreve sobre experiências pautadas pelos sentimentos experimentados durante a quarentena.
São 40 capítulos que falam da esperança, do medo, do choro, da solidão, da gentileza, do sentimento de impotência, do tempo, da culpa, das perdas e de outros sentimentos. “Acho que todo mundo descobriu todos os sentimentos que havia dentro de si. Há uma alternância voluptuosa de esperança, desilusão, niilismo, coragem, medo, amor, solidariedade, egoísmo. E o mais difícil talvez seja superar o egoísmo da sobrevivência, de pensar em si primeiro, sempre. Falo no livro que é como se a gente tivesse se tornado formiga. E é estranhíssimo isso porque o sapato parece um barco, a mesa parece um cais, a gente entrou para as impressões, para olhar a fechadura, o interruptor. Repara na máquina de cartão de crédito, nosso olhar se tornou microscópico. Tá a todo momento farejando o invisível dentro do visível”, compara.
Saiba Mais
Os filhos de Carpinejar, Vicente e Mariana, estão em Porto Alegre. O pai, o poeta Carlos Nejar, está no Rio de Janeiro. Mas o distanciamento físico e geográfico não é nada perto da sensação de estar perdido no tempo. O autor compara os tempos atuais ao dia da marmota, em que os personagens estão presos no tempo e, a cada dia, revivem um mesmo dia.
Preso no tempo
“Não é apenas confinamento geográfico espacial, é um confinamento temporal. Estamos presos num único tempo, como se fosse um dia da marmota interminável. Se sou preso, fico preso em um lugar, a pena vai expirar, vai acabar. Agora não, a gente está preso no tempo e não sabe quando vai terminar. E aí a ansiedade cresce e vem a necessidade de ocupar a mente para não sobrecarregar o coração. E ocupar a mente é fazer os trabalhos minúsculos. Antes a gente queria fazer o dia render, hoje a gente quer que o dia passe”, reflete.
Para lidar com esse cotidiano, Carpinejar se organizou dentro da dinâmica doméstica. Faz compras, cozinha, monta o cardápio, que pendura na porta da geladeira, e tenta se movimentar, “porque o corpo tem que acompanhar”. “O tempo parou”, garante. Mas não se pode deixar de reparar o mundo poeticamente. O livro, ele diz, é uma forma de salvar a poesia que resta.
“É como se você tivesse dissipado qualquer poder lírico de cantar a exuberância da vida. Quando a morte é a senhora do momento, temos que, de certa forma, como uma formiga, carregar aquela folhinha. Nunca dependemos tanto desse desenho coletivo, dessa cartografia coletiva”, acredita. E a poesia pode também ser uma forma de dar rosto e histórias aos números. Carpinejar lembra que não se pode banalizar ao olhar para as estatísticas. “É não entrar nos números, a poesia é personalizar, dar rosto, é contar a biografia, conservar a biografia de cada doente, de cada vítima”, diz, lembrando que parte do dinheiro obtido na venda do livro será revertida ao Hospital das Clínicas, em São Paulo.
Colo, por favor! Reflexões em tempos de isolamento
De Fabrício Carpinejar. Planeta, 176 páginas. R$ 39,90