Correio Braziliense
postado em 09/05/2020 06:01
A música têm tido um papel de extrema relevância no momento de pandemia do novo coronavírus. Seja por ser uma expressão ligada ao bem-estar emocional, seja pelo papel social que assumiu atualmente ao se aliar às campanhas e às doações. Os cantores Milton Nascimento e Criolo foram atrás dessa fusão para criar o projeto Existe amor, que deu origem a um EP com quatro faixas e uma ação para arrecadar verbas para a população em vulnerabilidade social no país.
“Nossa intenção é somar ainda mais com cada projeto que tem como objetivo ajudar as pessoas durante a pandemia. E a música é nossa ferramenta principal para que isso aconteça. Agora, mais que tudo, é necessário que cada um ajude da forma que estiver ao seu alcance. Isso sim é o mais urgente”, afirma Milton Nascimento em entrevista ao Correio.
A parceria da dupla era um desejo antigo e também já iniciado há alguns anos. Antes mesmo de se conhecerem oficialmente, cada um acompanhava o trabalho do outro à distância. Milton ouviu falar do rapper graças a versão feita para Cálice, música com Chico Buarque. Depois escutou Nó da orelha (disco de Criolo de 2011) e se encantou novamente, até que os artistas se conheceram no Prêmio da Música Brasileira de 2012 por intermédio de Ney Matogrosso. “Fiquei fã dele na hora, e logo na primeira audição já percebi que ali tinha um cara que tava vindo pra fazer história. No prêmio, foi o começo de tudo, e, a partir de então, nunca mais nos separamos”, revela.
No ano seguinte, Milton convidou Criolo para juntos fazerem a turnê Linha de frente, nome de uma das faixas do disco escutado por Bituca anos antes. Essa amizade cultivada nos últimos oito anos deu origem ao projeto Existe amor, lançado ontem nas plataformas digitais — e que, por enquanto, deve permanecer no âmbito digital, sem previsão de versão física. “Era um desejo antigo da gente ter um registro musical nosso, mas que a gente ficava guardando num lugar de acalanto. Também nunca ousei falar isso com ele. Mas aconteceu tudo de modo muito natural”, comenta Criolo.
Repertório
O álbum é uma conexão de trabalhos dos dois. Cais, do disco Clube da Esquina de 1972, dá inicio ao EP. A música ganhou uma abertura com o piano do pernambucano Amaro Freitas, que também aparece em Não existe amor em SP, releitura da faixa de Criolo gravada em Nó da orelha e primeiro single do EP. Ambas foram produzidas, gravadas e finalizadas neste ano, antes da pandemia do novo coronavírus.
“Para a voz de Milton, eu fiz um arranjo de piano que vem do conceito tradicional, pensando nos pianistas franceses, como Éric Satie e Yann Tiersen, nessa linha meio psicodélica do piano erudito, com poucas notas e com muita intenção. A voz de Milton te leva para o espiritual. Busquei juntar as melhores frequências sonoras para combinar com a voz dele”, explica Amaro Freitas. “Para Criolo, pensei na união do hip-hop com o jazz. Trazer a harmonia do jazz e misturar isso com o suingue da rua. Dois caras que são muito referências para mim são os pianistas americanos Robert Glasper e Herbie Hancock, que tem uma onda black music, com acordes maneiros, ensolarado e cheio de esperança. Tento traduzir isso. Trago isso para a parte do Criolo, que tem uma voz mais firme e agressiva, mas, ao mesmo tempo, suave. Foram dois meses de uma experiência muito legal”, completa.
Dez anjos, que Criolo e Milton Nascimento compuseram para Gal Costa e que integrou o álbum Estratosférica (2015), e O tambor, faixa do rapper com o maestro Arthur Verocai para o disco No voo do urubu (2016), haviam sido gravadas em 2018 com arranjos do próprio Verocai. O trabalho completo teve direção musical de Daniel Ganjaman.
Encontro
A reunião de Milton e Criolo é resultado da amizade e também das conexões musicais dos artistas, mesmo que ocupem lugares distintos na música brasileira. “Esse encontro entre a gente é uma coisa que vai além da música. É um encontro ancestral, e esse projeto é uma consequência direta disso. Acho que tudo começa a partir da nossa amizade. Sem isso, a gente não teria criado nada, digo no sentido musical mesmo, pois não teria uma verdade. Então, acredito que a nossa história pessoal (que é muito parecida), a nossa afinidade e, principalmente, a nossa visão de mundo, são o que nos complementa neste projeto”, avalia Bituca.
“Acredito que a gente se encontra numa série de lugares, acho que as histórias e os gostos. Nosso desejo de levar alguma coisa de positivo, de abraço com a nossa música, dividir isso com tudo mundo já são grandes pontos de encontro”, comenta Criolo. “A diferença muito clara nisso tudo é de que Milton é o mestre e eu sou o aluno, um aluno ainda com muitas dificuldades e muita coisa para melhorar. Talvez nem merecesse estar nessa sala com esse mestre, mas é mais ou menos por aí”, completa o rapper.
Sobre a parceria com a dupla, o pianista pernambucano Amaro Freitas diz: Foi uma conexão gigante de três gerações num ambiente de troca musical que é um estúdio. Um encontro que emocionou, pelo que cada um representa dentro da sua linha musical. Como Criolo falou, foi vivo e pulsante. Uma relação fantástica que trouxe o mais belo de cada um. Foi uma explosão de beleza artística. Quando você faz a fusão desses sentimentos sonoros, a beleza aflora naturalmente”.
Existe amor
De Milton Nascimento e Criolo. Oloko Records e Nascimento Música, 4 faixas. Disponível nas plataformas digitais.
Campanha solidária
As doações podem ser feitas no existeamor.com/doe por meio da plataforma de crowdfunding administrada pela Benfeitoria. O fundo é gerenciado pela SITAWI, que repassará os recursos para organizações como É de Lei, SP Invisível, Arsenal da Esperança, entre outras.
Duas perguntas // Criolo
Assim que vocês lançaram Não existe amor em SP a repercussão foi enorme. Como tem visto a repercussão do material?
Mostra o quanto ele é envolto de amizade muito sincera e do amor que a gente tem um pelo outro, pela música, pelas pessoas e por tudo aquilo que a arte provoca de mais forte na humanidade, que é lembrar que estamos vivos, lembrar que temos condições de gerar coisas extremamente transformadoras. Temos dentro do nosso peito, uma energia de transformação social muito grande. Essa campanha está acontecendo e está tendo uma adesão gigantesca, as pessoas têm se sentido muito tocadas e estão colaborando. Isso é muito importante.
Nos últimos anos, a arte foi contestada em muitos momentos. Mas, agora, na pandemia tem sido principal aliada. Como você vê isso?
Arte sempre foi, né? Não é de hoje, mas, agora, de um modo muito brutal e cruel. Nos últimos anos, a arte tem recebido ataques gigantescos e nesse momento de atribulação, tenso, de tristeza, depressivo, a arte tem conseguido fazer milagres. A arte é aliada do amor, da indagação, do questionamento. É expressão cultural, emocional, espiritual e intelectual. É uma soma de tantos temperos, desejos e jeitos de se perceber ainda vivo. A arte, mais uma vez, mostra seu valor que é de mostrar o valor que cada pessoa tem.
O brilho de Amaro
Alexandre de Paula
É a luz certeira do piano de Amaro Freitas que ilumina a composição de Existe amor, EP lançado por Milton Nascimento e Criolo. A genialidade do músico pernambucano, exibida em duas das quatro faixas, eleva o conjunto a um nível maior. Não é que falte qualidade às outras duas canções, regidas pelo fundamental maestro Arthur Verocai, mas o virtuosismo de Amaro — distante de qualquer exibicionismo e sempre a serviço da música — traz a dimensão do assombro ao trabalho. Amaro traz o lampejo inesperado do craque, um drible absurdo e encantador em meio a um time de grandes jogadores e a uma partida, até então, muito competente.
Cais — parceria de Milton e Ronaldo Bastos do repertório do primeiro Clube da esquina — abre o EP. A interpretação piano e voz é arriscada e coloca Criolo em missão complexa. Cantar ao lado do mineiro já é ousadia, mas se arriscar em canção de difícil execução como Cais e sem a possível maquiagem de um arranjo com mais instrumentos torna o desafio muito maior. Cria do rap, o paulistano surpreende e consegue, mesmo dentro das limitações vocais, sair-se bem.
A verve afiada de Criolo também brilha no breve disco, como nos versos contundentes de O tambor (parceria com Verocai). “Interminável é o dia em que a fome visita o irmão/ Pior que a fome é um dia de humilhação”, dispara o rapper. Da lavra de Criolo, Não existe amor em SP é a principal realização deste conjunto de músicas. O piano de Amaro e a voz de Milton, aliados aos versos que dialogam com o vazio dos dias atuais, tornam a canção maior e a versão, definitiva. Difícil imaginar a possibilidade de uma releitura melhor do que a registrada neste EP.
Em tempos dolorosos e pesados, o talento de Amaro, a contundência de Criolo e a potência de Milton são um recado, uma lembrança de que existe Brasil muito além da ignorância destes temporais.
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