Solidão, afastamento das pessoas, doenças e, em ao menos um ângulo mais solar: a redescoberta de traços profundamente humanos. Mesclando todos estes ingredientes, junto com o poder da criatividade, o cinema sempre demonstrou interesse quando o cenário fica caótico, algo próximo ao que temos vivido. Uma seleção de filmes de todas as épocas traz luz e renova as esperanças de que dias melhores estão por vir. Confira!
Janela indiscreta (1954)
Um fotógrafo ocioso, Jeff Jeffries (James Stewart), por causa de uma perna quebrada, leva ao limite a propensão ao voyeurismo: da janela do apartamento, bisbilhota a vida de todos. Isso até testemunhar um ato muito suspeito de um vizinho (Raymond Burr). Com um suspense exemplar, Alfred Hitchcock traz sofisticação e humor, como de praxe. Thelma Ritter, na pele da enfermeira de Jeff, contribui, com um diálogo espirituoso sobre o crescente distanciamento entre as pessoas, ao falar das estratégias de conquista bastante dificultadas: “Hoje é preciso ler muitos livros, aprender palavras difíceis, analisar um ao outro até não poder distinguir entre um namoro e um concurso público”.
O diário de Anne Frank (1959)
Foram oito indicações para o Oscar para este clássico de George Stevens que consegue encharcar, com emoções reais, drama, humor e imensa humanidade, um relato de jovem de 13 anos, enclausurada com a família e amigos num sótão de Amsterdã, durante a Segunda Guerra. Clandestina, a menina (que existiu), descobre da pior forma a sordidez embutida no preconceito contra judeus. Clássico absoluto.
O homem urso (2006)
Neste impressionante documentário de Werner Herzog, ele reconstrói a hostilidade e a aura de celebridade que envolveu Timothy Treadwell nas expedições rumo ao Alaska, a fim de afugentar caçadores de ursos. Ele sabia do risco que corria, ao, num cenário completamente isolado, forçar a amizade com animais que o levariam a trágico fim.
Testamento (1983)
A estreia na direção de Lynne Littman vem despida de apelação emocional, ao cercar um tema fortíssimo: a dissolução de uma família em que a mãe (Jane Alexander, brilhante) tenta afastar dos filhos a montanha de estragos dos efeitos de uma explosão nuclear. Delicado e inesquecível, tem cenas fortes como o de enterro de crianças em pátios onde, outrora, brincavam. Delicado é o registro da sociedade do lugarejo em que vivem, e que tenta, na base do espírito comunitário, vencer o invencível.
As aventuras de Robinson Crusoé (1952)
Filme da fase mexicana de Luis Buñuel, traz Dan O´Herlihy abraçando personagem universal: indicado ao Oscar, personifica não apenas a mais integral solidão, numa ilha deserta, mas ainda se apega a passagens da Bíblia para ter algum reconforto da má sorte. Baseado na literatura de Daniel Defoe, pouco a pouco o tema deriva: com a entrada em cena de outro personagem, há dois caminhos possíveis para Crusoé: o da relação harmônica e aquele em que palpita o desejo de dominação.
O céu por testemunha (1957)
A estrela Deborah Kerr e Robert Mitchum encaram um drama com quê romântico, no qual uma noviça e um militar se veem obrigados à convivência bastante íntima: encerrados numa caverna, a fim de se preservarem de inimigos japoneses, numa ilha do Pacífico, durante a Segunda Guerra. Disciplina, respeito e companheirismo estão selados no filme de John Huston.
O garoto selvagem (1970)
Foi a partir de um estudo de Lucien Malson sobre crianças apartadas da sociedade que o diretor François Truffaut achou o tema, baseado em personagem real — Victor d´Aveyron (o cigano Jean-Pierre Cargol, selecionado entre 2.500 atores). Na trama, pretendida “científica e poética”, pelo cineasta, às vésperas do século 19, um garoto com limitação cognitiva derivada da falta de afeto e comunicação é cuidado por Jean Itard (o próprio Truffaut, em cena), diretor do Instituto Nacional de Surdos-Mudos (em Paris). Com estilo documental, o cineasta levou o prêmio da prestigiosa
National Board of Review.
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Anticristo (2009)
Com uma entrega fora do comum dos atores Charlotte Gainsburg e Willem Dafoe, o dinamarquês Lars von Trier criva de terror psicológico um drama sobre o isolamento numa cabana, em que um casal (marcado pela morte do filho, um bebê), se debate entre depressão, culpa e sessões de terapia nada ortodoxas.
O anjo exterminador (1962)
Uma provocação dirigida à elite reside neste filme do espanhol Luis Buñuel. Mesmo com a porta aberta, um grupo de elegantes convidados fica preso a involuntário limbo: não conseguem deixar a mansão em que estão, e passa a viver cercado de atmosfera menos civilizada, caminhando para suicídios e disseminação de doenças.
The whisperers (1966)
Disputando o Oscar de melhor atriz, a idosa Edith Evans venceu prêmios internacionais como o Bafta, o Globo de Ouro e o Urso de Prata (em Berlim), neste filme assinado por Bryan Forbes, criado a partir de obra de Robert Nicolson. Preconceito, exploração econômica e mitomania acompanham a jornada de uma solitária senhora que cultiva paranoias e manias de grandeza para preencher a profunda solidão.
O último tango em Paris (1972)
A precisão nas imagens do veterano Vittorio Storaro, a música enervante de Gato Barbieri, a direção de Bernando Bertolucci e uma interpretação monumental de Marlon Brando: está afirmado o clássico. Enfurnado num apartamento, o protagonista enfrenta o processo de luto da esposa infiel, enquanto, sem laços afetivos, promove encontros sexuais com uma jovem interpretada por Maria Schneider. Isolado, o protagonista sai apenas duas vezes da garçoniére: no começo
e ao final da fita.
Na natureza selvagem (2007)
Num filme com a sobriedade do diretor Sean Penn, Emile Hirsch encara a trajetória real do andarilho Christopher McCandless (em cujos relatos se baseia a fita). Rumo ao Alasca, de carona em carona, ele vai, progressivamente, cortando laços sociais e atenta para fuga do papel de consumidor compulsivo da sociedade teleguiada. Longe de todos, quer apenas se integrar à natureza.
Salò, os 120 dias de Sodoma (1975)
A célebre obra do Marquês de Sade, repleta de perversão, orgias degradantes e agressões à Igreja Católica é colocada na tela, por Pierre Paolo Pasolini, que revela uma crítica ao Estado fascista de Mussolini. No enredo de tortura, um grupo de jovens do povão é arregimentado para servir a altos representantes de instituições. Incomunicáveis, ficam sujeitos ao que vier pela frente. Pasolini, também criou Pocilga (1969), outro filme que examina um cristão sem perspectivas que, no século 16, aos pés do Etna, fica entregue ao canibalismo; enquanto outra trama é desfiada na tela: num palácio, aristocrata misantropo se entrega à paixão por porcos.
Persona (1966)
Constante na dramaturgia de Ingmar Bergman, a ambivalência é a chave para entender os personagens de Bibi Andersson e de Liv Ullmann, pela ordem uma enfermeira e uma atriz em crise, indisposta a interagir na sociedade, a ponto de ser tratada, reclusa, numa ilha. Fusão mental e enigmas, permeados por confrontos e integração entre ambas, compõem o miolo do filme. Insuperável, e com linguagem única.
Grey Gardens (1975)
Documentário capitaneado por David Maysles, revela duas Edith Beale (mãe e filha, homônimas, de 79 e 56 anos) que escandalizaram os moradores de Long Island pela reclusão (numa mansão infecta), pela chocante relação de dependência mútua (patológica) e pela linhagem: sendo parentes de Jackie Kennedy-Onassis.
A viagem dos condenados (1976)
Baseado em fatos, o filme de Stuart Rosenberg traz um elenco all star: Orson Welles, Lee Grant, Jose Ferrer, Faye Dunaway e Max von Sydow. Saindo da Alemanha, em 1939, um navio, repleto de passageiros judeus, é malsucedido, ao tentar aportar em Cuba e na Flórida. Enquanto isso, numa micro sociedade em que os nazistas se fazem mostrar, o destino e os dramas de cada um se afunilam, até o inusitado desfecho. Tem ar e acabamento de minissérie antiga de tevê,
mas o tema é palpitante.
Safe (1995)
Até a forte solução final, a personagem de Julianne Moore passará misérias para decifrar fatores da saúde fragilizada, dia a dia, numa Los Angeles cada vez menos atraente, na visão dela. Todd Haynes (Longe do paraíso) é o diretor do filme em que uma sociedade new age, alijada de confortos do mercado consumista norte-americano, dá as caras.
A longa caminhada (1971)
De Nicolas Roeg (autor do clássico O homem que caiu na Terra, estrelado por David Bowie), mostra uma dupla de jovens ingleses largados no deserto australiano, à própria sorte, até o encontro com um aborígene em momento ritualístico, de absoluto retiro. Lucien Jon, o menino em cena, é filho do diretor, na vida real.
Outros filmes
A estrada (2010), de John Hillcoat
Um lugar silencioso (2018), de John Krasinski
A chinesa (1967), de Jean-Luc Godard
Até o fim (2013), de J.C. Chandor
127 horas (2010), de Danny Boyle
O quarto de Jack (2015), de Lenny Abrahamson
Perdido em Marte (2015), de Ridley Scott
Stevie (1978), de Robert Enders
Livre (2014), de Jean-Marc Vallée
Deuses e monstros (1998), de Bill Condon
Gerry (2002), de Gus Van Sant
Náufrago (2000), de Robert Zemekis
Eu sou a lenda (2007), de Francis Lawrence
O iluminado (1980), de Stanley Kubrick
El campo (2011), de Hernán Belón
Enterrado vivo (2010), de Rodrigo Cortés
Ela (2013), de Spike Jonze