Em um mundo completamente diferente por conta da pandemia do novo coronavírus, ouvir a interação de uma plateia, o som de instrumentos tocados por uma banda completa e a reunião de artistas traz uma imensa nostalgia. Causar essa sensação, inclusive, foi o que a banda BaianaSystem quis passar ao lançar o álbum Gil Baiana Ao Vivo em Salvador no meio da quarentena. O disco está disponível a partir desta quinta-feira (30/4) em todas as plataformas digitais. A versão em vinil, com encarte especial, será distribuída para assinantes do NOIZE Record Club. Ouça aqui.
"A gente quis lançar um disco ao vivo como uma provocação, trazendo essa sensação que justamente só o "ao vivo" traz em meio a uma situação de reclusão. A gente tinha se programado para repetir esse show, mas agora tudo mudou. Esse disco é uma memória de um momento que só se pode fazer através da arte, do que um show causa nas pessoas, aquela euforia, aquela sensação de que éramos felizes e até sabíamos, mas não o quanto", comenta Roberto Barreto, integrante do Baiana System, em entrevista ao Correio.
O material foi gravado durante um show do grupo em parceria com Gilberto Gil em novembro do ano passado que contou com quase 40 mil pessoas no público. A gravação traz exatamente o momento em que Gil e o Baiana se juntaram no palco para apresentar um repertório que deu origem a Gil Baiana Ao Vivo em Salvador, um álbum com sete faixas. "Já tínhamos escolhido o Gilberto Gil para esse encontro. Depois fomos para o processo de aproximação na hora da escolha do repertório", completa Barreto.
Seleção de músicas
O repertório selecionado por Roberto Barreto e Russo Passapusso traz canções de Gilberto Gil e do BaianaSystem. Há apenas duas faixas que não são dos artistas: Is this love, de Bob Marley, que abre o disco, e uma citação de Água de beber, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, no encerramento do álbum, que se mistura a Água, canção do disco O futuro não demora, lançado no ano passado pelo Baiana System. O disco é composto ainda por: Nos barracos da cidade (Gilberto Gil e Liminha), de Dia dorim noite neon (1985), que se encontra com Systema fobica (Russo Passapusso), do álbum BaianaSystem (2009); Extra, do disco homônimo de Gil de 1983; Pessoa nefasta, gravada em 1984 por Gilberto em Raça humana; Sarará miolo, de Satisfação -- Raras & inéditas (1977); e uma mistura de Emoriô (Gilberto Gil e João Donato), de 1975, com Dia de caça (Russo Passapusso), de Duas cidades (2016).
As músicas representam a interseção do trabalho dos artistas que se encontram na influência rítmica do reggae music e do ijexá (ritmo oriundo da Nigéria e levado para Bahia pelo iorubás escravizados). "Na escolha do repertório percebemos esses caminhos que basicamente temos em comum, como no reggae. O Gil mostra para o Brasil essa ligação com o ijexá, uma coisa de matriz da obra dele. Vimos de cara essa aproximação estética e da influência. Pra mim, Gilberto Gil é uma influência e uma referência enorme desde sempre. Não só no trabalho musical, mas na história dele. (Nesse processo) Todo mundo do Baiana foi se percebendo dessa forma também", comenta.
Além da questões sonoras, o Baiana e Gil encontraram outro ponto em comum: as fortes mensagens políticas e sociais nas letras. "Nos barracos da cidade, Pessoa nefasta e Sarará miolo são músicas que têm mensagens fortes ali, que têm um impacto grande no que a gente estava vivendo lá atrás e continua vivendo hoje. A gente partiu disso", completa Roberto. Para unir os estilos dos dois artistas, Barreto explica que o Baiana partiu das músicas originais primeiramente aprendendo a tocá-las para, só depois, incorporar a programação eletrônica característica da banda feita por João Meirelles. "Entendendo a base principal das músicas a gente começa a brincar, improvisar, sentir o que cabe naquela métrica", completa.
Reencontro
Nesta quinta-feira, o BaianaSystem e Gilberto Gil voltam a se reunir, mas agora remotamente para uma live no YouTube. A ideia não é apresentar um show, mas compartilhar um bate-papo com o público sobre esse encontro, agora, registrado em disco digital e físico. A versão em LP tem um material complementar com textos sobre os artistas e o encontro, além de fotos e arte de Filipe Cartaxo, responsável por todo o projeto gráfico e pela capa do disco.
A parte visual do encontro não será disponibilizada. Mas quem quiser saber mais sobre o show pode conferir o documentário Devassa -- Encontros tropicais, disponível no Globoplay, que retrata os bastidores da já lendária reunião e mostra algumas partes dessa reunião musical.
Crítica de Gil Baiana Ao Vivo em Salvador
Ouvir ao disco que registra o encontro entre Gilberto Gil e BaianaSystem é ser transportado para um momento bom, em que se podia sair de casa para curtir um show com ao vivo, com tudo que essa experiência tem. Logo em Is this love, canção de abertura do álbum, estão lá os aplausos, os gritos, o coro e a interação dos artistas com a plateia. É quase como ser transportado para aquele dia de novembro em que os artistas se reuniram.
O material não tem canções inéditas, mas isso não é um problema. As canções selecionadas continuam sendo atuais, mesmo que muitas delas tenham sido lançadas nos anos 1970 e 1980. Clássicos de Gil ganham nova roupagem, mas sem perder as características mais importantes, ganhando um ar novo proporcionado pelo jeito do BaianaSystem de fazer música.
A escolha do repertório é certeira e mostra que Gil e Baiana sempre tiveram muitas coisas em comum, desde a influência ritmíca como a escolha das mensagens passadas nas letras das canções. Até por isso é natural que algumas músicas sejam mescladas, como é o caso de Nos barracos da cidade que se une a Systema fobica, enquanto Emoriô se junta a Dia da caça.
Gil e Baiana tinham a intenção de repetir o show em 2020. Com a pandemia, isso não deve mais acontecer. Então, o que nos restar é aproveitar essa reunião histórica pelas ondas sonoras. E que ondas!