Em 11 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a pandemia do novo coronavírus. A divulgação de que a Covid-19 havia se disseminado pelo mundo fez com que os países precisassem tomar medidas de controle do vírus. Uma das primeiras a ser impostas foi a proibição de aglomerações, o que afetou diretamente o mercado de entretenimento e artístico. Shows, espetáculos, concertos, peças, lançamentos de livros e filmes, exposições e toda atividade cultural que depende de público foi cancelada ou adiada. A maioria ainda sem uma nova data para realização.
A internet foi o caminho natural para esse mercado. Tudo começou com as lives intimistas, normalmente no Instagram. O sucesso dessa interação — já existente, mas antes menos utilizada — evoluiu ganhando uma forma mais profissional migrando para outra plataforma, o YouTube, e se unindo a uma causa nobre: a arrecadação de doações para os necessitados em meio à crise instaurada pelo avanço da doença. Hoje, todo grande artista, principalmente da música, fez ou ainda vai fazer uma live.
“Do ponto de vista de como surgiu, a live sempre existiu. Ela só passou a ter mais relevância agora por uma questão de saúde. As pessoas começaram a ter acesso maior ao serviço de streaming que sempre esteve disponível. Elas tiveram mais tempo para consumir. O segundo ponto é que o brasileiro é uma das populações que mais consomem entretenimento relacionado à música. Como dissemos no projeto Fome de música, juntou a “música com a vontade de comer”. Essa necessidade de entreter do maistream com a carência do público e o fato de se ter um serviço disponível aumentou a frequência e o consumo na pandemia. Essa soma foi significativa”, avalia Gustavo Luveira, diretor associado de relacionamento e novos negócios da R2 Produções.
O sertanejo Gusttavo Lima foi o pioneiro no Brasil ao implementar o formato de live mais profissional na quarentena. “O pessoal já vinha pedindo para gente fazer uma live, mas, queria fazer algo bem produzido. Logo no começo da quarentena, nosso canal do YouTube bateu 10 milhões de inscritos e vimos então a oportunidade de comemorar essa marca e atender a esse pedido dos fãs. Fizemos tudo muito rápido. Na primeira live, por exemplo, a gente conseguiu deixar tudo organizado em apenas três dias, combinando tudo por telefone e pela internet. Só nos encontramos pessoalmente no dia dos trabalhos”, conta em entrevista ao Correio.
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Recordes
O cenário virou tendência no Brasil. O sucesso é tão grande que os números são altíssimos e colocaram o país a bater recordes de acessos simultâneos na plataforma. Antes, a marca era de Beyoncé com 458 mil acessos durante a transmissão da apresentação no Festival Coachella, em 2018. Logo, a norte-americana perdeu o posto para os brasileiros: Marília Mendonça (3,3 milhões), Jorge & Mateus (3,1 milhões) e Gusttavo Lima (731 mil) que apareceram no YouTube com cenários, estruturas de som e com apoio de grandes marcas.
“Acho que o desenvolvimento está na mesma velocidade que o entretenimento tem no país. É algo rápido e muito dinâmico. Essa preocupação com a qualidade, principalmente visual e sonora, mostra que os profissionais foram para uma outra plataforma, mas querem manter a qualidade de um bom show, de um bom espetáculo. A diferença é só que a caixa cênica mudou. O palco é o YouTube ou outras telinhas”, completa Luveira.
Os recordes não se limitam as visualizações, mas também ao número de arrecadações. Só a live de Sandy & Junior conseguiu arrecadar R$ 1,8 milhão em doações em parceria com o projeto Fome de Música, que tem sido presença constante nas apresentações on-line e converte as doações em alimentos para o Mesa Brasil Sesc.
Além disso, os shows virtuais, agora, aparecem nas telas recheados de patrocinadores de diferentes âmbitos, desde cervejas até lojas de eletrodomésticos, mostrando que podem ser uma opção de renda para o mercado que está estagnado. “Agora começa a briga por audiência, infelizmente. E um tópico que eu bato muito é que a gente tem que pensar que ter 500 mil pessoas numa live já era inimaginável”, afirma Luveira.
Para o especialista, o cenário de shows virtuais abre ainda a possibilidade para artistas menores se projetarem. Eles não precisam mais vender a apresentação para um grande evento. Eles mesmos podem fazer os próprios. É dessa forma que surgem festivais como o No Seu Quadrado, lançado no último dia 17 em Brasília e segue até o dia 27. Evento multilinguagem e com transmissão on-line, o projeto dá visibilidade a artistas locais que foram selecionados por um chamamento público.
“Sempre se falou da conexão digital, de se criar comunidades. Mas não éramos tão presentes nesse cenário. Por exemplo, não se tinha uma plataforma digital que agregasse o conteúdo cultural de Brasília. Essa digitalização forçada cria uma nova base on-line. E uma outra coisa que a gente está descobrindo agora são as lives. Dos 270 artistas que integram a programação havia aqueles que nunca tinham feito uma live na vida. A gente não sabe quando os eventos poderão voltar ao normal. Então temos que formatar esse ecossistema on-line da cultura”, comenta Lucas Tobias, diretor-executivo do Festival No Seu Quadrado.
Próximo passos
Mostrando que o mercado de lives evolui de forma paralela à velocidade da internet, o cenário já tem outras novidades, como a cobrança de ingressos e a criação de plataformas específicas para as lives. “Acho que ainda vai diminuir um pouco a velocidade da evolução. Mas o brasileiro é muito criativo e atento às novas tecnologias. Os formatos vêm sendo inovados. É um mercado muito competitivo. Que precisa crescer levando em consideração a questão da saúde”, define Gustavo Luveira.
“Não podemos esquecer que esse é um momento que estamos numa onda solidária. Mas pode, sim, ser uma grande fonte de receita e que pode ajudar muita gente. Vejo um futuro promissor de impacto econômico. Mas tem o ponto de que ainda não se sabe como cobrar. Tudo é um grande experimento. Mas a live veio para ficar!”, define o especialista.
A dupla Anavitória foi uma das primeiras artistas do mainstream a divulgar lives com cobrança de ingresso. O duo anunciou um pacote de lives no valor de R$ 95, que agrega ação formativa com o envolvimento dos profissionais que integravam a turnê das cantoras, como diretores de áudio e músicos. O objetivo é disseminar o conhecimento e arrecadar verbas para esses profissionais que estão parados devido à pandemia e não tem como se reinserir com o “boom” das lives, que demandam equipes menores por conta das medidas de distanciamento social para conter a Covid-19.
Na capital federal, uma iniciativa surgiu no último 17 com a intenção de ser uma plataforma de shows on-line com cobrança de ingresso, o site Acesso Ingresso. A estreia teve apresentação de Dhi Ribeiro e Félix Junior com taxa de R$ 10. No próximo dia 29, outra artista local, a cantora Rosana Brown, se apresenta pelo site. “O que a gente fez nesse momento total de crise em que parou tudo nesse segmento de eventos foi pensar em algo que pudesse ser criado para ajudar os artistas e os produtores de eventos. Criamos uma plataforma gerenciável independente do YouTube, que está ditando várias regras. Ou seja, é o máximo de independência e conseguindo monetizar. É possível vender um ingresso como se fosse um show físico, mas que o espectador pode ver do conforto de casa. Com mais interatividade e qualidade de transmissão para o público e mais oportunidade de negócios para o artista”, explica Frederico Barros, da empresa Fazendo Mais idealizadora do Acesso Ingresso.
Apesar de a primeira iniciativa ter nascido no quadradinho, grande nomes do cenário musical também já se movimentaram nesse sentido. É o caso do cantor Matheus, da dupla com o irmão Kauan. Nesta semana, o artista divulgou a criação do aplicativo Live Live Brasil para transmissões ao vivo. O serviço terá o formato de pay-per-view, em que as pessoas comprarão um evento específico que será transmitido de forma profissional e ainda poderão participar interagindo com os artistas, enviando perguntas e montando o repertório. A plataforma está sendo desenvolvida para abranger a música sertaneja e também outros gêneros.
Duas perguntas / Gusttavo Lima
Quais são os principais desafios das lives em meio à quarentena?
Acredito que o principal desafio é fazer tudo de forma remota e com uma equipe bastante reduzida, mas, graças a Deus, temos grandes profissionais ao nosso lado e conseguimos levar ao público um conteúdo com a qualidade que prezamos.
Quais são os principais papéis das lives?
Acredito que são dois: o primeiro é levar alegria e entretenimento ao público e o segundo é o papel social, pois por meio dessas lives estamos podendo ajudar muitas pessoas que precisam.