Um ideal de melhora na sociedade povoa o mais novo projeto do premiado cineasta brasiliense Fáuston da Silva. O enredo parte da postura do adolescente Agnus, morador de Ceilândia que encontra um livro milenar chamado Manual do herói (que dá título ao longa dirigido por Fáuston). Escrita em idioma desconhecido, a publicação rende poderes especiais aos que são capazes de desvendá-lo.
Na ficção, três grupos povoam o mundo: heróis, vilões e omissos. Na mesma medida dos vilões (uma minoria que impacta fortemente a sociedade), os heróis são poucos, e prestes à extinção pelas ações de Arturo. “Agnus, o rapaz, percebe que mesmo diante das mais brutais injustiças, a maioria das pessoas é irreparavelmente omissas”, explica o diretor.
Com locações em Ceilândia, Águas Claras, Taguatinga e Samambaia, Manual do herói propõe engajamento: cerca a meta de que as pessoas busquem postura mais heroica e responsável. Prevalece o DNA da bravura e de descoberta impresso em filmes anteriores de Fáuston, entre os quais Meu amigo Nietzsche (2012) e Ácido acético (2014).
“Temos feito um cinema com personagens da periferia urbana brasileira, mas sem nos interessarmos por temas atrativos ao jornalismo: drogas, armas e sangue. Também não queremos que as pessoas sintam pena dos nossos personagens”, avalia o diretor. Um “código” da produção de personagens “fortes, corajosos, determinados e independentes” se faz pesente no cinema de Fáuston, envolvido em títulos como O melhor fotógrafo do mundo (2015) e A Terra em que pisar (2019).
Manual do herói é, nitidamente, desenvolvido para o público. “Gosto de festivais e do júri oficial dos eventos; mas gosto mais ainda de ouvir e ver a reação do público nas salas de exibição. Ver o que funcionou ou não como planejado”, observa o cineasta. Se finalizado em 2020, como objetiva o diretor, o filme deverá chegar aos cinemas comerciais em 2021. Mas, tudo ainda é “uma incógnita”, pelo que percebe Fáuston da Silva.
» Entrevista // Fáuston da Silva
Qual aporte viabilizará o filme?
Nosso filme é financiado pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC) e pelo FSA. Sem os quais o sonho de fazer cinema em Brasília afunda. O cinema é uma janela! E o FAC tem possibilitado que essa janela mostre nossa cidade para o mundo. Filmes produzidos aqui têm sido vistos em dezenas de países do mundo. Nosso curta Balãozinho azul foi dublado na França e na Itália para que crianças daqueles países pudessem ter acesso a uma história narrada aqui na nossa periferia, no Itapoã. Nossa equipe será renovadora; principalmente feita de profissionais jovens, com menos de dez anos de atuação no mercado. Tudo isso graças ao FAC.
A atualidade caótica, com o medo do coronavírus, moldará algo no filme?
Nunca acho uma boa ideia um filme se envolver demais com recorte de tempo em que ele está sendo feito. Isso faz com que ele fique datado muito rapidamente. A arte precisa ser atemporal? Não precisa. Mas é bom que tente. Ainda estamos enfiados na crise. O distanciamento temporal que a história recomenda para uma melhor análise é impossível nesse momento.
Que público objetivam?
Todos somos céticos quando nos deparamos com uma obra que deseja alcançar o público. Mas a grande verdade é que todos os realizadores de cinema do mundo querem que as pessoas vejam seus filmes... Todos! E não somos exceção. A ideia não é todo mundo e todos os públicos assistirem aos nossos filmes. A ideia é alcançar o público proposto. Sei que é problema fazer concessões que afetem o ponto de vista artístico em nome do grande público. Mas também não queremos ter que usar a desculpa de que somos artistas incompreendidos.
Qual é a importância do uso de storyboard para seu projeto?
Sempre trabalho com storyboard detalhado. Sempre penso muito na montagem do filme — antes e durante o set. Não gosto de improviso no set porque acho que prejudica a montagem. Os improvisos e contribuições podem vir nos ensaios para termos um set um pouco menos imprevisível. Um megadesafio do nosso filme são as cenas de luta. Nelas a concepção tem que ser mais precisa para não passarmos vergonha (risos). Nossa equipe de dublês é da Pinoia Filmes. Eles são incríveis.
Como vislumbra o pós-pandemia?
Acho que o mundo vai mudar totalmente. Deus foi generoso e estamos ensaiando uma guerra biológica contra um inimigo comparativamente “menos pior” do que o sarampo, por exemplo. Acho que no futuro, caso um vírus mais violento se espalhe pelo planeta, estaremos mais preparados. Não estou minimizando as mortes. Estou apenas imaginando o cenário em que um vírus eficiente em vagar pelo mundo também fosse eficiente em contaminar e matar como o sarampo. Estaríamos mais lascados do que estamos agora. Há muitas questões aqui: os efeitos biológicos do vírus serão mais mortais do que os efeitos econômicos? E o cenário político? E as relações internacionais a partir daqui? Não creio que o cinema dê conta de interpretar tudo isso agora.
Qual o significado da arte, na nossa conjuntura?
A arte tem um papel mais efetivo quando luta contra forças humanas: política, economia, moral. Mas contra uma força da natureza nos resta pular uma etapa e pensarmos nas nossas reações. Debater nosso egoísmo, nossa irresponsabilidade em relação ao próximo, a postura de nossas lideranças políticas, econômicas e religiosas. Aqui a arte pode fazer seu melhor: trazer para superfície do debate a nossa selvageria e talvez nos devolver a civilidade.
Qual sua percepção do nosso momento?
A representação ficcional sai mais uma vez perdendo diante da realidade. Um dos sintomas, quase patológico, desse momento (como foi também no 11 de Setembro) é a busca constante por notícias do mundo real. Sabe quando buscamos sair da rotina por meio do escapismo do cinema? Da mesma forma as pessoas fazem isso com as notícias... e nesse momento elas (as notícias) são muito mais apelativas que do qualquer ficção.
“Temos feito um cinema com personagens da periferia urbana brasileira”
Fáuston da Silva, diretor