O ator brasiliense Cláudio Falcão é o terceiro personagem da série que trata da relação entre as pessoas que fazem arte em Brasília e de como elas veem a cidade. “Lembro que andava o Guará inteiro de bicicleta e não tinham grandes prédios. Aliás, não tinha prédio nenhum. A Asa Norte também era bem mais descampada. Lembro que estudava na 106 Norte e morava na 410, era tudo diferente. E ter vivido essa mudança significa muito para mim e para minha arte”, lembra Cláudio. Em meados da década de 1980, o artista ficou conhecido popularmente por ser o criador das personagens Mary Help, Gorete e Berenice, que representam, de um jeito único, a fala cultural de pontos do país.
Você nasceu em Brasília e acompanhou a transformação da cidade em vários sentidos. Por tempos morou no Guará e na Asa Norte. Como foi acompanhar toda essa evolução na construção desses bairros?
Percebi uma diferença brutal nesses dois bairros durante todos esses anos. Surgiram muitas novas construções... A gente ia andando para a escola, andava muito pelo Eixão… Lembro de ser atacado por vários passarinhos enquanto caminhava pelas quadras e de pegar muita amora nos pés...
São quase 40 anos de carreira teatral e no humor. Qual a sua relação com Brasília e o que a cidade representa para você e para sua arte?
Brasília, para minha arte, representa tudo. Foi aqui que obtive reconhecimento com o público e tive oportunidade de conhecer grandes artistas, trabalhar além do solo no humor. Não me considero um comediante, mas sim um ator. E, com isso, já tive oportunidade de trabalhar com excelentes diretores da cidade, pessoas incríveis como Hugo Rodas, Lenora Lobo e com os Irmãos Guimarães. Desde a década de 1980, percebo o crescimento da cena cultural da cidade, obtendo cada vez mais força diante do povo e da crítica.
Cada personalidade das suas personagens é extremamente singular e característica. Como surgiu a ideia de interpretar Gorete, que é cearense, Mary Help, que é de Brasília e a mineira Berenice?
A ideia surgiu a partir de um convite da Adriana Nunes, uma diretora também muito importante na minha carreira artística. Ela foi a marte do grupo que eu fazia parte na década de 1980, a Culpa é da Mãe, que originou Os Melhores do Mundo. Ela e o James Fensterseifer, que produzia o Jogo de cena, queriam criar um quadro de humor fixo. Aceitei e, para o quadro, criei a Mary. Quando acabou o projeto, recebi o convite de uma rádio para trabalhar lá. Pensei, então: essa personagem precisa de uma mãe e essas duas precisam de uma secretária. Foi assim que surgiu a Berenice, mãe da Mary e a Gorete, empregada doméstica da casa.
Elas foram inspiradas em alguém? Em quem?
Como Brasília tem essa característica de ter gente do Brasil todo, coloquei um sotaque em cada uma delas. A Mary é a típica calanga brasiliense, a Berenice é uma mineirona e a Gorete é cearense. A Mary foi inspirada nos típicos adolescentes de Brasília, que falam muito “véi” e usam “tipo assim” como vírgula. A Berenice foi inspirada em uma diretora de uma escola que eu estudava. Ela era professora de inglês e era mineira, sempre misturava os dois sotaques, era muito engraçado. A Gorete foi inspirada na Terezinha, que trabalha lá em casa há muitos anos, e, também, no jeito que minha mãe, que é do Ceará, fala.
As suas três clássicas personagens representam uma geração completa, lá pelos anos 1990 e 2000. Qual, na sua opinião, é a importância de cada uma para a construção artística de Brasília? Você as vê como inspiração para o teatro daqui?
Não sei se é forte demais dizer que elas são inspiração para o teatro local. Mas já ouvi muitos depoimentos de pessoas que dizem se inspirar em mim. Pessoas que disseram que depois que me viram atuar, tiveram a ideia de entrar para o mundo teatral. Para mim é sempre uma honra.
A Mary Help foi criada em 1992. Naquela época, a personagem usava muitas gírias e frases comuns de adolescentes brasilienses. Se ela fosse criada hoje, você alteraria algum dos bordões ou ainda crê que os jovens continuam com o mesmo dialeto?
Acho que têm muitas gírias que são usadas até hoje. A expressão “véi” é um clássico. O “tipo”, também é. Acho que são dialetos que nunca vão sair do vocabulário do adolescente e do jovem de Brasília. Mas, quando criei a Mary, por exemplo, a internet não existia. Hoje, criamos novas formas de falar. Ela não fala Instagram, mas sim “Insta, tipo Gram”. Tive que introduzir novos bordões no cotidiano dela.
Em 1990 tinham bem menos artistas de humor na capital federal. E, para você, que é tido como um dos principais nomes do teatro brasiliense, a cena do humor de Brasília está crescendo? Os artistas e as obras daqui têm sido mais reconhecidos e valorizados?
A cena do humor de Brasília, com toda certeza, de 20 anos pra cá, cresceu substancialmente. Na época que criei as personagens, ainda não existia o stand-up comedy no Brasil. Hoje, vejo figuras ótimas investindo no estilo. Tem muitos bons atores, muita gente jovem. Figuras que tenho o prazer de ir assistir e, toda vez, fico encantado com o talento de cada um. Os novos atores estão sempre se atualizando e se renovando, até mais do que eu, inclusive. O G7 e os Melhores do Mundo, por exemplo, são ótimos exemplos de reconhecimento do humor brasiliense. Além deles, as figuras clássicas, como Alexandre Ribondi, também.
Qual das suas peças têm maior valor sentimental? E qual tem maior relação com a sua trajetória em Brasília?
Por incrível que pareça, o Crônico cômico, meu último espetáculo, é o que tem maior valor sentimental. Ele nem teve tanto sucesso de público como Pérolas de Berenice, ou espetáculos sobre a Mary. Mas, o Crônico cômico me traduz muito como pessoa. Eu apareço como Cláudio, de cara limpa. Sou eu tentando fazer um stand-up para mostrar minha trajetória como artista. Mas, as personagens têm o momento delas no show. No enredo, eu abordo minha vida pessoal, falo sobre o transplante de rim que eu fiz… Não para me colocar como vítima, mas para colocar para a sociedade o quanto é importante ser doador de órgãos. Aproveito a peça para fazer uma campanha de doação de órgãos. Por isso é tão importante sentimentalmente. Ano passado também tive a oportunidade de retomar um trabalho lindo com Hugo Rodas e pude revisitar textos do Nelson Rodrigues, um autor que eu amo de paixão.
* Estagiário sob supervisão de Igor Silveira