O rapper Japão, do grupo Viela 17, é o segundo personagem da série que trata da relação entre as pessoas que fazem arte em Brasília e de como elas veem a cidade. Serão bate-papos semanais, cheios de memórias afetivas e muita vontade em favor da cultura brasiliense. “Posso dizer que já vivi momentos maravilhosos pela capital, e outros que nem tanto. O show que fiz, o Viela 17 Convida MV Bill, é algo que não vai sair da minha memória tão cedo. Foi um dia chuvoso, na Praça da Bíblia, onde você tem P Norte, Expansão, QNP, Sol Nascente, tudo próximo, local que ficou conhecido como área de conflito. Então você, em plena chuva, conseguir fazer um evento com casa lotada, mais de sete mil pessoas, assistindo nosso show, sem nenhum tipo de violência e sem arredar o pé na chuva, isso é memorável”, lembra Japão, morador da Expansão do Setor O, em Ceilândia, desde 1985.
Entrevista / Japão
Você mora na Expansão do Setor O em Ceilândia, desde 1985. Como é sua relação com Brasília nesses mais de 30 anos de carreira?
Sempre tive Brasília como minha base, então minha relação é muito boa. Mas já foi pior, quando se trata de outra cidade e você começa a ter destaque artisticamente, isso acaba te colocando na cena brasiliense. Quando você chega no centro de Brasília com a sua arte, ainda mais no começo do rap que a música não era entendida, esse momento foi meio conflituoso. Só que hoje não, temos uma relação muito boa com a cidade, não somente Brasília, mas todas as cidades.
Como você chegou até o rap?
Eu comecei no rap em 1989. Na verdade, ele veio até mim por meio do rádio, ouvindo programas que tinham em Brasília com aquela parada do melô (estilo musical), que era uma música rimada, com DJ Raffa Santoro, ouvia bastante o programa do Toninho Pop também, então eu ouvia e achava legal, mas aquelas rimas não falavam de questões sociais. Até que um dia na rádio, ouvi uma música do Thaíde (rapper paulista) chamada Corpo fechado e vi que era possível fazer música falando dos problemas, juntei com a questão de ser ceilandense, ver a violência da cidade, e decidi denunciar isso por meio da música. O rap veio para mim como uma válvula de escape para poder representar minha juventude naquela época e poder falar dos problemas da minha cidade com a música.
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O caminho que você trilhou no passado pode estar sendo trilhado por outros cantores da cidade? Há alguma diferença?
O mundo muda, assim como as pessoas e a música. Então, existe hoje um processo normal de mudança, eu ainda me conservo fazendo rap como aprendi a fazer, mas hoje posso dizer que a música está em “outro patamar”, como fala o Bruno Henrique do Flamengo. A galera hoje tem outros anseios, outro sistema de liberdade, outros problemas sociais ou não, hoje uma certa parcela está focada mais em uma questão de entretenimento, de popularizar a música. Respeito, não faço, mas respeito.
Que conselho daria para quem está no início do caminho?
Para fazer rap não existe fórmula. O conselho que eu dou é para que sigam os próprios sonhos e sejam responsáveis pelos seus atos. Se você acha que o mundo está bom, está tudo uma maravilha, e quer cantar sobre isso, beleza, mas você é responsável pelos seus atos. Se você considera que o mundo está uma porcaria e quer bater de frente com isso, você será responsável também. O sonho está aí, todo mundo tem que acreditar nos seus neles, mas saiba que o rap é um estilo musical que cobra. Se você faz algo que não tenha interesse comum entre a comunidade que você vive e representa, você será cobrado por isso. Há vários artistas que entram na cena e, por uma palavra, acabam saindo do cenário de forma ridícula. Você precisa saber muito bem o que fala, hoje virou algo tão pop que se tornou glamoroso, todos querem falar da favela, da periferia, mas precisam saber que essa fórmula precisa estar de acordo com o pensamento da comunidade onde vive, ou que representa. Caso vá contra isso, receberá críticas, e muitas delas não são críticas musicais, bonitinhas, com português correto, são ferrenhas.
Tem algum rapper novo do DF que você escute?
Gosto do Heitor Valente. Para mim, é um dos maiores representantes dessa nova geração, que faz um rap bacana, contestador, de forma original, tenho muito respeito e gosto muito. Fora isso, tem a Tribo da Periferia, da qual conheço o Duckjay (membro do grupo), que é um cara superinteligente, batalhador, e, se eles estão em um espaço de mainstream, é pelo trabalho, por acreditar no sonho.
Brasília é uma cidade receptiva ao rap nacional?
O rap nacional não se baseia nisso, as pessoas têm essa parada de querer que a cidade aceite a pessoa, mas o rap não é para isso. O rap tem que ser compreendido, agora se ele é aceito pela sociedade, isso pode ser consequência do seu trabalho, mas eu pouco me preocupo com isso, aliás minha preocupação com isso é zero, se querem aceitar, beleza, se não quiserem eu vou continuar fazendo mesmo assim. As pessoas se preocupam se vão ser aceitas, se o som vai bater a meta, se vai ter milhões de visualizações, eu não. Me preocupo em tocar corações, tocar na consciência da galera.
Enxerga alguma evolução em questão de público, desde quando começou até hoje?
É muito diferente. Existe hoje uma garotada que vai para as festas de rap, mas querem ouvir o artista falando de uísque, festa e drogas. Mas também têm outras pessoas, que hoje é um público menor do que era nos anos 1990, até porque o público daquela época já envelheceu e muitos não vão mais a bailes, esse é mais meu público, que curte e dá valor a periferia. Em Brasília o público de rap não dá mais para você basear, se for a Campinas, lá só toca quem faz a linha do gangsta rap, então o público é ligado nisso, em Brasília não, ela recebe tudo, vai englobando tudo. O cara pode ir ao show e ouvir um artista que fala de consciência negra, outro que fala sobre a violência contra a mulher e outro que fala de sexo, o cara vai ouvir os três da mesma forma. Eu acho que Brasília nesse ponto perdeu muito o que era nos anos 1990, um público contestador, perdeu muito, mas continua forte.
Quais são suas referências na arte?
Minha referência no rap nacional se chama Marcão, do grupo Baseado nas Ruas, sempre foi minha referência de escrita, levada, de consciência. E fora do Brasil, um dos rappers que mais admiro se chama Rakim, que tenho muito respeito pela consciência dele e jeito de rimar.
Brasília e Ceilândia te inspiram a escrever?
Minha fonte de inspiração está na Ceilândia. Quando vamos viajar fazemos questão de dizer que somos de Ceilândia.
O rap sempre foi um estilo de força e questionador. Acredita que pelo atual momento político que vivemos, o rap se tornou mais essencial?
Alguns artistas de rap acabam trabalhando em um processo de conscientização nesse momento político, assim como o Gog está fazendo. Tem muito essa questão do público que acha que o rap não pode se envolver com política, mas fazer rap é político, quando você questiona, está fazendo política. Mas é uma política apartidária, se tem um cara do rap que está fazendo uma política partidária, é um problema do artista, não da cultura, pois a cultura é bem maior que isso.
Como é para você ter levado e levar até hoje o nome de Brasília e Ceilândia por todo Brasil e mundo?
É muito positivo. Quando você ouve a música Capítulo 4, Versículo 3, dos Racionais MC’s que diz: “Para os manos da Baixada Fluminense à Ceilândia eu sei/As ruas não são como a Disneylândia”, eu sei que ele ouviu minha música para escrever esse verso. Quando chego no extremo sul desse país e vejo um cara com uma camiseta escrito Ceilândia, eu penso que realmente consegui trazer essa parada para lá. É minha fonte de inspiração, nunca maquiei minha cidade, se eu falo que está violenta, é porque estou vivendo isso.
Em uma conversa com o rapper carioca MV Bill, ele disse que a memória mais forte que tem da capital são dos rolês contigo. E você, qual memória mais forte que tem de Brasília?
O MV Bill é um dos maiores amigos que eu tenho no rap. Toda vez que ele ou outro artista vem para cá, faço questão de mostrar a cidade. Posso dizer que já vivi momentos maravilhosos pela capital, e outros que nem tanto. O show que fiz, o Viela 17 Convida MV Bill, é algo que não vai sair da minha memória tão cedo. Foi um dia chuvoso, na Praça da Bíblia, onde você tem P Norte, Expansão, QNP, Sol Nascente, tudo próximo, local que ficou conhecido como área de conflito. Então você em plena chuva, conseguir fazer um evento com casa lotada, mais de 7 mil pessoas, assistindo nosso show, sem nenhum tipo de violência e sem arredar o pé na chuva, isso é memorável. Assim como foi a gravação do meu DVD Japão (Viela 17) 26 anos de Rap Nacional, na Casa do Cantador.
*Estagiário sob a supervisão de Igor Silveira