Diversão e Arte

Confira a entrevista com o codiretor do filme Nóis por nóis

Ele defende uma reação social em busca dos direitos cidadãos



À primeira vista, o longa Nóis por nóis — dirigido por Aly Muritiba e Jandir Santin — pode passar mensagem equivocada, mas nada tem a ver com a ideia de Cacá Diegues que, há 10 anos, como produtor, fez acontecer o longa 5x Favela — Agora por nós mesmos.

 “Nem mesmo o Cinema Novo, que admiramos, nos serviu de inspiração na abordagem. A gente se inspirou muito mais nas histórias que a molecada (da Vila Sabará, em Curitiba) contou e no modo como eles se relacionavam com as câmeras e os meios de produção com seus celulares. Se houve algum modelo, partiu da juventude que fez uma oficina de interpretação e acabou atuando no filme”, explica o diretor baiano Aly Muritiba.

O cineasta, morador do Paraná (onde se aprimorou com estudos de comunicação e cultura, pela USP), é velho conhecido de Brasília, tendo, por exemplo, conquistado seis prêmios Candango (inclusive de melhor direção), no festival de cinema, com Para minha amada morta (2015). Com pouco mais de uma década em atividade no audiovisual, Muritiba tem méritos como o de ter sido selecionado para o Festival de Sundance (segmento de drama, no World Cinema), com o longa Ferrugem (2018).

Em Nóis por nóis, em meio a muito rap, perseguições policiais e outras situações encenadas, os jovens atores ajudaram no projeto do filme, ao lado do educador e codiretor Jandir Santin. “A codireção é sempre desafiadora e prazerosa: algo dialogal, sob resistência e concessão. Houve embate, colaboração e compreensão”, destaca Muritiba, em entrevista ao Correio.

Entre momentos de dureza, para o segmento audiovisual, ao menos um tópico favorável envolve Muritiba: “Acabei de rodar Deserto particular, filme de amor que pensa nas possibilidades libertárias do amor e do afeto. É um filme que idealiza as relações humanas em uma realidade tão conflagrada quanto a nossa”. Com a atual pandemia, o longa-metragem, que saiu dos cinemas, estará no mercado digital, a partir de 9 de abril. 




Há uma tensão sequenciada em Nóis por nóis: o convite ao levante, ao revide, tem um teor assemelhado ao de Bacurau. Conclamar as pessoas à reação é temerário, em alguma instância? 
Num cenário conflagrado, num cenário de conflito, num cenário de guerra, exigir ou pedir para aqueles que estão sendo atingidos, que estão sendo machucados, que se recolham, se escondam ou tentem negociar a paz é de uma covardia absurda. Acho que é preciso que os opressores entendam que a opressão provoca nos oprimidos um nível de indignação muito grande. De dor muito grande, e que pode e, eventualmente, deve, sim, levar à reação. Então não acredito que a violência deva ser combatida com a violência; mas, eventualmente, a violência pode gerar a violência. Gerar a revolta, sim. E não venha ninguém pedir para um oprimido que se mantenha oprimido, não se revolte, e que abaixe a cabeça. Não dá! O que os opressores do sistema esperam é que os oprimidos abaixem a cabeça, sejam humildes, nunca revidem, como diz uma letra do Emicida. Mas acontece que eles revidam e este revide pode ser muito violento.


Que diferenças expõem as juventudes retratadas no longa-metragem Ferrugem e no Nóis por nóis? 
Há uma diferença gritante entre a juventude tratada no Ferrugem e o pessoal mostrado em Nóis por nóis. Sobretudo, a diferença é socioeconômica. Os de Ferrugem eram ricos, brancos, privilegiados. As questões que os afligem não são de ordem material. No Nóis por nóis falamos de sobrevivência, de como sobreviver num meio opressivo e de carência, e de um lugar em que o Estado não chega ou só chega através de violência policial.


Mais uma vez a tecnologia se afirma como fundamental num filme seu. A democratização dos meios ressoa de que modo nas comunidades que vocês conhecem? 
Hoje, boa parte da população das comunidades tem algum acesso, pelo menos, a meios tecnológicos de produção ou de consumo de audiovisual. Todo mundo com quem me relacionei no Sabará assiste vídeos no YouTube, no Instagram ou usa o WhatsApp, ou tem celular com uma câmera que filma perfeitamente. Esses jovens, diferentemente, da minha geração, por exemplo, são jovens, de certo modo, educados ou familiarizados com o audiovisual. Isso pode lhes dar uma ferramenta importantíssima de como se colocar no mundo. É uma das características muito claras na trajetória do personagem Café (do longa Nóis por nóis) que desencadeia toda história: ele tem, no celular, instrumento de trabalho e de luta.


Na sua opinião, qual o pico do desentendimento entre elite e os ditos marginalizados?
Há um abismo de desentendimento muito grande entre a elite econômica, dominante e política do país, junto à grande maioria, marginalizada, e que vive nas periferias das grandes cidades do país ou nos rincões de regiões como a do Norte e do Nordeste. A elite simplesmente não quer enxergar e faz questão de não lidar com os excluídos, por perceber nisso uma manutenção do status quo. Só existem opressores porque existem oprimidos. Os opressores, consciente ou inconscientemente, azeitam essa engrenagem. Acontece que muitos excluídos não querem mais se ver como excluídos. Eles estão lutando pela inclusão, reivindicando os seus espaços. Nas esferas públicas e privadas. Nóis por nóis se insere nessa luta, ao trazer a história destes jovens que são atores naturais que colaboraram com a elaboração do roteiro e que fazem parte do movimento negro e do movimento hip-hop e que ali, no filme, gritam suas vontades, desejos e anseios de ter voz e de viver de maneira digna.


Há algum receio de que o retrato da Polícia Militar corrupta macule o outro lado da moeda: dos policiais honestos?
É importante deixar claro que, obviamente, existe uma gama muito grande, e acredito que a maioria de policiais sejam honestos, tente cumprir o seu dever de proteger a população e que não faz uso da arma e da farda, que lhes foi entregue pela sociedade, para oprimir os pobres e os marginalizados. No entanto, é inegável que existe uma parcela considerável de policiais militares que oprimem, sistematicamente, as populações marginalizadas, que enxerga pretos, minas e seres periféricos como inimigos. Nos escolhemos contar essa história no filme. Não tenho nenhum receio de que isso macule a imagem da instituição, porque não estamos a criticando. Estamos criticando os indivíduos violentos, corruptos e inescrupulosos.


Qual é o horizonte para o audiovisual no nosso país?
Com a extinção do Ministério da Cultura, com o sucateamento da Agência Nacional do Cinema e com a possibilidade de extinção do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), as perspectivas para a realização do audiovisual são as piores possíveis. Se as coisas seguirem a toada em que estamos, não se fará mais filmes no Brasil. A atual secretária de Cultura, Regina Duarte, disse que o dinheiro público não deve ser usado para financiar filmes para agradar a minorias. É um discurso tão absurdo, tão antidemocrático. Democracia é o regime que ampara, e, deve amparar sim, as minorias Ela esquece que filmes não são feitos para agradar a minorias ou maiorias: filmes são feitos para expressar ideias, para entreter e para comunicar. O cenário audiovisual é bastante desolador e por isso muitos colegas estão fazendo séries para canais de tevê ou para streaming: precisamos sobreviver, de alguma maneira.




Alguns filmes de Muritiba


Pátio (2013)
• Curta-metragem selecionado para a Semana da Crítica no Festival de Cannes. A possibilidade da palavra liberdade pesa, entre as conversas de detentos aglutinados num pátio de cadeia no qual partilham de jogos de futebol e lances de capoeira. Aly Muritiba, vale a lembrança, é ex-agente penitenciário.


Brasil (2014)
• Um país dividido está exemplificado na trama do curta-metragem em que dois irmãos — um policial e outro, ativista — partem para uma manifestação em sede de governo. Integrou as seleções dos festivais internacionais de Gramado, de Havana (Cuba) e de Guardalajara (México).


Para minha amada morta (2015)
• Um impactante registro feito em fita de vídeo VHS aniquila parte de um sentimento amoroso nutrido por Fernando (Fernando Alves Pinto), neste filme premiado com seis troféus Candango no 48º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Premiado como melhor diretor, Muritiba ainda levou o prêmio paralelo da crítica (Abraccine). Na trama, um viúvo, exemplar na criação do filho Daniel (Vinícius Sabbag), terá a memória devotada à antiga esposa Ana (Michelle Pucci) modificada.


Ferrugem (2018)
• Drama revela a avalanche de problemas ocasionados pelo vazamento de um vídeo íntimo, com carga sexual. Compartilhar material não autorizado nas redes sociais é um fator definitivo na vida da adolescente Tati (Tifanny Dopke), estudante penalizada pelo cyberbullying, frente à imaturidade dos colegas de classe. O longa teve exibição no Festival de Sundance e conquistou Kikito de melhor filme brasileiro no Festival de Gramado, há dois anos.