Marcelino Freire gosta de dizer que faz suas oficinas de criação literária para encontrar parceiros de bar. É uma brincadeira para relaxar e para mostrar que a produção literária não é um mistério. Às vezes, garante Marcelino, levar para o bar o sujeito acometido de bloqueio criativo funciona. Ajuda até a espantar clichês porque, relaxado, o suposto autor deixa aflorar a própria voz e larga de mão um padrão de escrita imposto pelo mercado. E assim, Marcelino vai levando pela mão os aspirantes a escritor com a oficina Soltando a língua, realizada desde 2003 e que, agora, chega ao Distrito Federal.
Autor de oito livros, entre eles Nossos ossos, premiado com o Machado de Assis, e Contos negreiros, vencedor do Jabuti em 2006, Marcelino encara as oficinas como um espaço de criação, mas também de aprendizado. “Geralmente, em todos os lugares que vou formo mais leitores que escritores, porque tem muita gente que quer escrever e não quer ler, muita gente que quer publicar, mas não quer escrever”, explica o escritor. A primeira providência do professor é realizar um sorteio com papeizinhos preenchidos com nomes de escritores brasileiros e latino-americanos.
Os participantes têm a missão inicial de pesquisar sobre esses autores para ampliar o universo, porque uma das constatações de Marcelino é que, muitas vezes, o sujeito quer ser escritor ou poeta mas não lê literatura nem poesia. “Escrever não é só colocar a palavra no papel, mas saber dos seus parceiros e parceiras, pessoas que se lascaram muito pra fazer o que eles estão querendo fazer. Então, logo de cara tem essa ideia de leitura e de encontrar nossas famílias literárias”, avisa o autor.
Entre os problemas comuns com os quais tem que lidar, o professor cita o bloqueio criativo. “Existe um culto ao bloqueio, à ideia de ‘estou sem inspiração, e tal’. Aí, vou dizer como faz para o seu personagem tomar cerveja com você, como dar um banho no seu personagem”, conta. “Tem muita coisa a fazer para que o personagem continue vivendo. Faço uma grande conversa, não tou ditando regra pra ninguém. Até posso cagar regra, mas dou a descarga. É uma grande conversa a partir dos dilemas.”
Entre os que participam, Marcelino identifica uma turma variada. Pela Soltando a língua passaram nomes como Sheyla Smanioto, vencedora do Prêmio Sesc de Literatura com Desesterro, e Aline Bei, ganhadora do Prêmio São Paulo de Literatura com O peso do pássaro morto, mas também amantes da literatura que acreditam poder enriquecer a compreensão das narrativas ao assistir às aulas. “Tem ouvinte que vai porque é um ótimo leitor. Ninguém é obrigado a entregar resultado, a oficina não é custo-benefício. Vai lá para o que quiser. Tem cantores e compositores que fazem minha oficina, que só escrevem letra de música e que querem ampliar seu repertório. Tem a pessoa que vai lá fazer tricô. É só chegar. No mínimo, a gente encontra amigos e amigas porque a vida está muito difícil e, se a gente não se juntar, não dá”, diz Marcelino.
Pioneirismo
O nome do escritor e professor Luiz Antonio Assis Brasil há muito ocupa lugar de destaque quando se trata de aulas de escrita criativa. Ele introduziu a disciplina no programa de pós-graduação em Letras da PUC de Porto Alegre em 1985 e, por suas aulas, passaram alguns dos mais importantes nomes da literatura contemporânea, gente como Carol Bensimon e Daniel Galera. Agora, Assis Brasil embarca em um projeto on-line de oficinas coordenado pelo escritor e professor Jéferson Assunção e em parceria com a TAG Livros.
Na Quadro Amarelo – Plataforma de Escrita Criativa, o aluno terá acesso a 40 horas de aulas divididas em níveis básico, intermediário e avançado. Assis Brasil participa deste último como professor e integra a equipe da plataforma como supervisor. “Nesses 35 anos, o Assis Brasil gerou todo esse ambiente de escrita criativa em Porto Alegre e o que fizemos foi colocar isso na rede de maneira organizada. A ideia é que tenhamos outras temporadas e cada temporada com dois autores, professores e escritores, aumentando a diversidade. O projeto é isso: uma plataforma de escrita criativa em que o estudante pode montar seu próprio curso”, explica Jéferson.
Cada temporada terá professores convidados com autores conhecidos do meio literário, mas Jéferson ainda não revela os nomes. Intitulado Escrita para pessoas criativas, o primeiro curso vai tratar do fundamento da escrita criativa, da origem da narrativa, dos vários tipos de estruturas e do personagem de ficção, este último uma especialidade de Assis Brasil.”A personagem é tudo num romance”, avisa Assis. “Nem tanto no conto contemporâneo, em que mais importa o fato do que a personagem.Mas quanto ao romance, é a personagem que o ‘provoca’ e, num segundo plano, dá um sentido a ele.”
Em entrevista, o professor, que também é autor de 21 livros, entre eles Escrever ficção, e ganhador do Prêmio Portugal Telecom com o romance A margem imóvel do rio (2004), conta sobre como idealizou as aulas e sobre os desafios envolvidos na prática de ensinar autores a escrever.
Cinco Perguntas/ Luiz Antônio Assis Brasil
É possível aprender a escrever ficção. E como?
Despertando em si o juízo crítico, lendo muito, escrevendo muito, atentando ao que se passa na cena literária, ouvindo a opinião dos outros, frequentando as outras artes e, sendo possível, participando de uma oficina de criação literária de qualidade, seja presencial ou on-line.
Porto Alegre, de certa forma, se tornou um polo de produção literária contemporânea. Que participação você sente que teve nisso?
Vejo isso, antes de tudo, como o resultado de um sólido background literário que não vem de hoje. Minha participação? Talvez tenha sido apenas de catalisar as energias dessa juventude, fazendo-a ler muito e escrever muito.
Quantos por cento de inspiração e quanto de trabalho para escrever um bom romance?
A inspiração é dominante, e isso por quê? Porque a pessoa, para ter a inspiração de um romance, é porque já leu muitos romances e, portanto, já adquiriu muito das técnicas ficcionais para escrevê-lo. Assim, o trabalho torna-se mais leve, e, longe de ser uma carga, transforma-se num movimento interior de grande prazer.
Sua especialidade é o personagem? O quanto ele representa de um romance/conto bem escrito?
Sim, gosto de tratar da personagem. A história pode ser pífia, quase inexistente, como em Memórias póstumas — mas o Brás, que personagem! A personagem convincente, inclusive, “faz acontecer” até os fatos aleatórios de um romance, haja vista a morte de Macabéa.
Você gosta da literatura contemporânea produzida hoje no Brasil? Por quê?
Gosto e leio muito, em função do meu ofício e, também, para o meu prazer. Trata-se de uma escrita fresca, experimental, única, especialmente agora em que, passada a fase da autoficção, passa a olhar para os lados e entender o outro — e o social — como sujeito hábil a produzir boas narrativas.
Soltando a Língua — Oficina de Escrita Literária
Com Marcelino Freire, dias 26, 27 e 28 de março e 2, 3 e 4 de abril, quinta e sexta, das 19h30 às 22h30, e sábado, das 9h30 às 12h30, no Comoequetalá (CLN 407 Bloco B loja 17). Vagas limitadas. Investimento: R$ 1.300,00 (até 15/03), e R$ 1.450,00 (até 25/03, quando encerram as inscrições). Informações e inscrições: 61 9.8127.8667 ou carvalhedoproducoes@gmail.com / Para assinar a Quadro Amarelo, acesse www.quadroamarelo.com.br. Contatos: contato@quadroamarelo.com.br