Diversão e Arte

Brava gente candanga

Em novo livro, o poeta Nicolas Behr perpetua a história de personalidades que fazem parte da memória afetiva da capital




Estranho seria se o poeta Nicolas Behr ficasse de fora das comemorações dos 60 anos de Brasília, musa maior de seus poemas. Ele se mudou para a capital brasileira, em 1974, e confessa ter inveja desta gente que veio para cá antes da fundação, em 1960, para construir e tornar concreto o sonho de Juscelino Kubitschek e a visão de Dom Bosco. É em homenagem aos candangos, pessoas que colocaram tijolos, concreto, arte, cultura, pensamento e natureza na cidade, que o poeta publicará em abril o 15° livro, Rasília, uma brincadeira como nome da capital na linha de Braxília, Brasilíada e BrasíliA-Z, alguns dos oito livros do autor só sobre a cidade.

A ideia surgiu quando, entre 2015 e 2016, a pesquisadora Gilda Furiati, que escreveu uma tese de mestrado sobre a obra de Nicolas, perguntou para ele: “Você conhece bem a cidade, leu muito, sabe bastante. Queria saber se você ainda consegue escrever alguma coisa espontânea sobre Brasília.” O poeta, que na época estava lendo o livro Mensagem, de Fernando Pessoa, aceitou o desafio e pensou em escrever um livro sobre os heróis da fundação da capital, como no livro do poeta português.

“A grande epopeia da construção de Brasília ainda não foi contada. Não temos um grande livro, um grande filme. Foi uma coisa mítica. A maior realização do povo brasileiro, que jamais fez algo tão ousado e criativo”, exalta o autor. Com o novo livro, ainda não pretende constituir esse épico, mas fazer uma homenagem a algumas dessas figuras, que ele classifica como a “Geração Mítica”. “Nós temos uma mitologia — uma mitologia candanga — e, pretensamente, esse livro é um épico fragmentado”, analisa.

São 67 poemas curtos, intitulados com o nome dos personagens a que fazem alusão: do cineasta Afonso Brazza ao urbanista Lucio Costa. Do arquiteto Oscar Niemeyer ao paisagista Burle Marx, passando pelo palhaço Ary Pára-Raios, os roqueiros famosos Renato Russo e Cássia Eller, o poeta Pezão. “São pessoas que deram o sangue ou se dedicaram à cidade”.

Outro aspecto em comum é o fato de terem morrido, ou, como prefere o escritor, serem “mortos-vivos”: “Eles não estão mortos. Estão vivos na nossa memória, na nossa vida. Não vão morrer nunca enquanto nos lembrarmos deles”, conceitua. Apenas três personagens vivos ganharam poemas: os artistas plásticos Marianne Peretti e Gougon, cujas obras são ícones da paisagem brasiliense; e Tião Areia, pioneiro da cidade de São Sebastião. Só dois são políticos. Juscelino Kubitschek e José Aparecido Oliveira.

A princípio, foram levantados 150 nomes, mas nem todos viraram poemas. “Alguns não fizeram o ‘clique’. A gente não escolhe o poema, é o poema que nos escolhe. Se não rola, não força”. Ele alega, ainda, que os nomes são representativos de cada categoria, e contemplam os colegas, com diversidade. Os demais foram incluídos em um índice intitulado “mortos-vivos”.

Mais do que exaltar as personalidades, o poeta se preocupou em transmitir uma visão pessoal sobre elas, em um mosaico de memórias, percepções, histórias e reflexões. “Modéstia incluída, eu conheci um pouco da história desses personagens, então era um material poético muito disponível. Como conheci essas pessoas, li, convivi, eu tinha que compartilhar. O que a gente quer é o prazer de escrever e compartilhar esse prazer estético.”

E não só o prazer estético, como o conhecimento. Ao final do livro é apresentado um apêndice com minibiografias dos 67 candangos transformados em poemas. “Se a pessoa não aproveitar os poemas, tem as minibiografias”, diverte-se. “A história é feita de ideias e movimentos, mas essas ideias e movimentos são feitas por pessoas que circulam, vivem e pressionam. Essas pessoas merecem ser lembradas”, reflete o poeta, que se preocupa também com a transmissão da história para as novas gerações.

No ônibus

Estórias e curiosidades pipocam nas páginas. Gregorinho, por exemplo, é um sujeito pouco que pode ter inspirado o João de Santo Cristo da música Faroeste Caboclo, do Legião Urbana. TT Catalão remete ao velório do famoso jornalista, que morreu em janeiro. Cassiano Nunes lembra o período em que os dois poetas se encontravam no ônibus.

Esse mesmo poeta contou para Nicolas uma história divertida sobre médico Aloysio Campos da Paz. O fundador do hospital Sarah Kubitschek, especializado em problemas locomotores, foi flagrado pelo poeta apostando corrida de cadeira de rodas no hospital, divertindo-se horrores. Aloysio, por sua vez, contou para Nicolas a história do seu encontro com Darcy Ribeiro, que estava internado no hospital, nas últimas. O antropólogo, na maca, agarrou o braço de médico e confessou: “Eu não queria morrer”. As histórias se fundem no poema Aloysio Campos da Paz.

“O livro é sobre isso. Sobre a vida, a plenitude, a morte. Sobre Brasília”, sintetiza Nicolas, que ficou feliz com o livro e orgulhoso de ter acertado a mão em alguns poemas. Durante quatro anos ele burilou os poemas, cortando, reescrevendo e jogando fora, para fazer jus à espontaneidade proposta a ele por Gilda Furiati, lá no começo. “Ou o poema é simples, ou é impossível. E simples é o complexo resolvido. É o mais difícil. O simples é o ápice da sofisticação.”

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira



ALOYSIO CAMPOS DA PAZ

ao entrar no sarah

o vi de longe,

numa cadeira de rodas

dava voltas
sobre si mesmo
rodopiava e ria, ria

se aproximou, pegou
firme no meu braço, e disse
me olhando nos olhos

eu não queria morrer


AFONSO BRAZZA

artista tudo pode

morrer várias vezes
na mesma cena

o artista pode também
nunca morrer


ARY PÁRA-RAIOS

lá vem o palhaço
pela W3

na contramão



CASSIANO NUNES

entro no grande circular
e tua voz me saúda

sente-se aqui comigo,
poeta rebelde



GREGORINHO

faroeste improvável
no noroeste

faroeste sem bala
no sudoeste

santo cristo atravessa
baleado
a faixa de pedestre




CLÉSIO FERREIRA

em que melodia
se perdeu
a tua melhor rima?

onde se escondeu
o poema
que não consegui
escrever pra ti?


JK

já o enterramos

mas ainda não morreu
na cidade
que nem se inaugurou

RENATO RUSSO

essa pressa
em virar
mito

vontade
de cometa

fúria
de iluminar

ROBERTO BURLE MARX

esta planta / palavra
combina com aquela
árvore / poema

esta cor / letra
gosta daquela
folha

em branco


TIÃO AREIA

deu nome
à agrovila
de são sebastião

deu tudo que tinha