Um dos livros mais lidos e conhecidos do mundo, o clássico O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, foi o ponto de partida para a obra O pequeno príncipe preto, que ganhou uma versão literária em 2020 pela Editora Nova Fronteira após dois anos em cartaz nos palcos de teatro e ter sido assistido por 60 mil pessoas. Escrito pelo ator, diretor, dramaturgo, artista plástico e articulador cultural Rodrigo França, o livro nasceu da necessidade de colocar uma criança negra no papel de protagonista. “É difícil encontrar personagens na literatura infantil de meninos e meninas negros. É uma provocação, porque não há príncipes e princesas negros”, conta em entrevista ao Correio.
O pequeno príncipe preto tem três pontos em comum com a obra de Saint-Exupéry. A começar pelo fato de que o menino negro vive em um planeta apenas com uma árvore. Há, ainda, a relação com uma raposa e a ressignificação de valores. Também é possível encontrar passagens que fazem referência ao clássico, principalmente, quando fala de “cativar o outro”. “Tem três pontos que se encaixam. Mas foi uma provocação. É o segundo livro mais vendido do mundo, então associar a nomenclatura preto junto (ao título) atiça uma reflexão, um questionamento”, defende o autor.
Apesar das similaridades, a história gira em torno do menino negro que espalha as sementes da Baobá, que ele batiza de Ubuntu, por outros planetas, com o objetivo de mantê-la viva por meio da ancestralidade e de desenvolver uma relação de coletividade e união. “Mas a gente coloca a Baobá num outro patamar. No clássico, ela é uma erva daninha, que o menino deve matar para que não destrua o planeta dele. Aqui, a gente coloca a forma que a árvore merece, porque em diversas culturas da África, a Baobá é uma árvore sagrada, milenar. Então, dentro do livro, ela passa toda essa sabedoria milenar para o menino, sobre a relação das suas transições, da sua cultura, do autoamor e do autocuidado, e principalmente, sobre ancestralidade”, explica apontando a principal mudança.
Trazer uma narrativa dos palcos para as páginas de um livro foi um desafio. “No teatro a gente codifica tudo num cenário, com uma boa trilha sonora, o que não temos na literatura. Temos que conduzir o leitor a tudo. A minha maior preocupação foi preservar aquilo que já afetava quem tinha acesso ao espetáculo e transcrever todas essas sensações. Tive que ser bastante detalhista em relação ao ambiente e as sensações, até mesmo ao cheiro que o menino encontra em determinados lugares. Foi uma preocupação básica para que o leitor consiga mergulhar na atmosfera desse personagem”, completa França.
Para isso, o autor contou com o apoio da ilustradora Juliana Barbosa Pereira, com quem ele havia trabalhado na versão teatral. As animações produzidas pela artista para os palcos, agora, se tornaram um complemento no livro. A ideia de incluir Juliana no projeto também tem outro viés: o de dar protagonismo a uma mulher negra, dentro de um projeto escrito por um homem e protagonizado por um menino. “Como o próprio livro tem uma quebra de hegemonia: é um homem negro que escreve, é um homem negro como protagonista. Eu quis quebrar mais ainda essa hegemonia masculina e trouxe uma mulher negra”, revela.
Militância na arte
Rodrigo França tem uma extensa carreira no teatro, principalmente no Rio de Janeiro, mas a projeção nacional aconteceu no ano passado, quando ele participou da 19ª edição do Big Brother Brasil. Não levou o prêmio, mas colocou no horário nobre debates que só conseguia levar para os palcos e para a sala de aula — ele também é professor. “É óbvio que o dinheiro seria muito bem-vindo, mas esse não foi o meu objetivo, até porque eu sei do racismo estrutural. Eu sabia que seria muito difícil um homem negro ganhar, por isso estou torcendo para o Babu e para Thelma (no BBB20), porque a gente sabe sobre o tipo de olhar que esses corpos têm. Não entrei com a expectativa de vencer, mas de publicitar todo o trabalho que desenvolvo há 29 anos. Foram expostas 12 pautas importantes para o Brasil: racismo estrutural, mercado de trabalho, diferença salarial entre homens e mulheres, mercado para a pessoa trans, blackface, lugar de fala, tantas outras coisas. Sai de lá vitorioso, sem a menor dúvida. Minha sala de aula não teria tanto peso em quantidade”, avalia.
O artista tem usado essa projeção conquistada no programa para dar ainda mais passos no cenário cultural e na disseminação da pauta negra. Ele está em cartaz com as peças Oboró: Masculinidades negras e Yabá: Mulheres negras, que discutem a relação desses corpos na cultura iorubá e o racismo estrutural no Brasil. O primeiro estava previsto na programação do Festival de Curitiba, que acabou sendo adiado por conta da pandemia de coronavírus. Só no ano passado, empregou 123 profissionais diretamente em projetos teatrais, todos feitos sem patrocínio, com investimento próprio de França. “Eu não romantizo o perrengue, a guerrilha. Eu acho que isso é uma violência. Talvez eu esteja no ranking dos produtores que mais produzem teatro no Brasil sem patrocínio. Isso é racismo estrutural, mas não qualifica o meu trabalho”, define.
França ainda se dedica a novos trabalhos. Depois do primeiro livro, ele também estará no audiovisual. “Quando entrei num programa como aquele (o BBB) era para furar bolhas. Por mais que o meu teatro esteja lotado, não consigo atingir todo mundo. A literatura atinge, por isso a necessidade de escrever. Mas o audiovisual chega a lugares que o teatro também não chega. Por isso estou me dedicando a roteiros de cinema e série, quero me dedicar a carreira de diretor de cinema a partir do ano que vem”, diz e anuncia ter um projeto, ainda em segredo, com um canal de televisão por assinatura.
O pequeno príncipe preto
De Rodrigo França, com ilustração de Juliana Barbosa Pereira. Editora Nova Fronteira, 32 páginas. Preço médio: R$ 39,90.