Correio Braziliense
postado em 11/03/2020 09:00
Nas telas de cinema, o cineasta pernambucano Hilton Lacerda já viveu o momento de ator, no elenco do premiado longa FilmeFobia. Era uma produção sobre medos, feita há 12 anos. Como ser humano, ele admite que tem fobia de ralo. Não entende o por quê — já como cidadão contemporâneo, sabe dos medos e das razões. “Hoje em dia, tenho muito medo de ter medo. Nos colocaram numa situação em que tudo é tão monstruoso que acachapa. O momento é belicoso, perigoso, e isso me deixa apreensivo e triste”, avalia. Feito há sete anos, o longa Tatuagem (de Lacerda), como ele aponta, trazia na trama espaço para a redemocratização, “com possibilidades”. Ao lançar o filme (em cartaz na cidade) Fim de festa, centrado num crime ocorrido no carnaval, as certezas inexistem, dada a “rasteira” num país que se afirmava. O longa não dialoga, frontalmente, com aqueles que comungam da atual política.
Teria a máscara do atual governo caído, na visão do artista? “A máscara faz parte da construção que esteve por aí. A credibilidade nas promessas para mim nunca aconteceram. Se existiu uma máscara, eu nunca tinha percebido. Agora o estado das coisas está se tornando mais aparente, isso, sim, é verdade. Existe um mal-estar, uma angústia muito grande que está estourada dentro do país”, demarca.
É com dose de culpa e num ambiente sem saídas (“claustrofóbico”) que vive o protagonista do filme, interpretado por Irandhir Santos (de Tropa de elite 2 e O som ao redor). “A profissão de policial civil para ele é uma fuga: Breno não está investigando e resolvendo um caso (a morte de uma turista); ele está se investigando. Ele faz uma autoanálise”, comenta o ator, em alta pelo atual trabalho televisivo Amor de mãe.
Irandhir conta ter tido a sorte de contar com um amigo policial que é delegado da área de homicídios (tal qual seu personagem), e que, no passado, foi ator (Paulo Dias, de Amigos de risco). “Busquei-o para estar neste universo tão distante. Breno tem uma extrema sensibilidade, e está a serviço da polícia. Ele imprime no trabalho uma humanidade que não tinha visto até então. Disse pra ele: ‘quem ganhou foi a polícia em te ter’”, comenta.
O diretor acha importante ressaltar que o personagem “não é agente de repressão, mas de investigação”. “Ainda assim, ele está completamente fora de controle. Quando chega ao pico de nervosismo, põe tudo para fora: age como policial. Quando está fora do contexto familiar, Breno tem o cinismo, uma dose de arrogância e traz uma carga de falsa representação de sentimentos”, comenta. Longe da vontade de “humanizar” o policial, Hilton quis retirar Breno “do coletivo”, para ressaltar o quanto está deslocado: “Ele nem gosta de ser policial”, pontua.
Existem pontos curiosos em Fim de festa: na trama, ainda que tenha tido um filho assassinado por policial, há uma empregada doméstica que trabalha junto na casa do policial; no dever, e sem orgulho, Breno prende um jovem negro da periferia e, como ressalta Lacerda, há a babá negra que cuidava “dos filhos dos outros”, traço que fortalece a admiração do jovem personagem Angelo (Leandro Villa) — filho de uma babá negra — e traz um “momentâneo mal-estar” para demais personagens de Gustavo Patriota e Amanda Beça que, com a babá “quase da família”, querem ser legais, “mas não conseguem ser bacanas”.
Com os colegas pernambucanos — que têm levado pra frente um cinema contestador —, Hilton Lacerda engrossa o coro, com Fim de festa. O longa atual tem crimes de pessoas das esferas privilegiadas, tem recorte que acusa caos social recifense e ainda o emprego de drones (elementos de intersecção em muitas das fitas regionais de pernambuco). “Acho que são itens que compõem nossa forma de observar o mundo que está à volta, num local privilegiado do horror, com sensação de um mundo mais violento. Vejo o uso dos drones como se fossem insetos tecnológicos, vigias que invadem a privacidade, num sinal dos tempos”, conclui Hilton Lacerda.
Três perguntas / Irandhir Santos
O que o Fim de festa traz de atualidade?
Há um paralelo muito forte com o que tem acontecido no país. Do filme, brota ressaca, brota cansaço. O Brasil, há pouco tempo atrás, estava em festa — num momento de auge da nossa cultura. Com um governo que apoiava, culturalmente. Sofremos, agora, com o tolher e com a perseguição escancarada. A arte já nos provou, entretanto, em outros momentos da história, que ela sobrevive a governos tirânicos. Quanto ao público, há os espectadores que se interessam mais pelo desenvolvimento do caso do crime, mas tem os que mergulham mais na relação pai e filho retratada. Há genialidade no Hilton, ao desenvolver uma trama de camadas e complexa.
Na novela Amor de mãe, você responde por um tipo brutal. Como lida com isso?
O personagem é o grande modelo atual brasileiro. É um desafio por ser muito diferente de tudo que acredito. É espantoso — você encarna o machista, misógino e você tem resposta de parte da população que se identifica com isso! Tenho o cuidado de ter o ponto crítico o tempo todo. O personagem da novela me leva por caminhos pelos quais não tinha passado. Tivemos uma cena de amor e sexo, por exemplo, e a colega de cena resolveu que deveria ser algo extremado e louco (o sexo deles). Ela sugeriu: “Eu vou lamber esta tua careca”. E houve uma repercussão enorme. Supreendeu-me que começassem a falar em pornografia na tevê. Foi só uma lambida na careca! Achei assustador que isso causasse alvoroço. Reflete bem a onda moral que está nos banhando.
Qual o segredo no êxito do cinema pernambucano?
É um privilégio ter nascido no estado de Pernambuco, pelo momento efervescente. Até mesmo os cineastas contemporâneos de lá trazem a versatilidade. Estar lá é mais do que faculdade. Sou quem sou, por ter passado pelas mãos de profissionais como Camilo Cavalcante, que traça um sertão único; Kleber Mendonça Filho, que alcança o mundo com as questões sociais, e por Claudio Assis, capaz de ter uma potência de denúncia singular. Hilton experiencia o retrato do corpo como expressão política. Há a poesia do cotidiano, no centro. Ele trata de relações humanas.
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