Diversão e Arte

Monólogo 'A valsa de Lili' é inspirado em história de limitação e superação

Espetáculo conta com a atriz Débora Duboc e estreia nesta quinta-feira no CCBB

Correio Braziliense
postado em 05/03/2020 06:00
Duboc: 'A Lili celebra o que a humanidade tem de mais bonito, por isso que ela é importante neste momento. Ela é luz'
Sob os holofotes do teatro, a atriz Débora Duboc interpreta Lili. Apesar de sofrer de paralisia e movimentar apenas a cabeça, a personagem dança uma valsa com a vida. Os passos vêm da alma e, a cada emoção, transcendem na voz e na interpretação da artista para dialogar com o público. “A valsa é a capacidade que todo ser humano tem de celebrar a magia da existência. É aquilo que se integra ao outro, à humanidade, à vida.  A sinceridade que todos nós temos, que baila. São todas essas emoções, esses lugares que habitamos na vida, o encanto da potência do poético intermediado pela respiração”, define a atriz.

A partir desta quinta-feira (5/3) até 22 de março, A valsa de Lili ocupa o teatro do Centro Cultural Banco do Brasil. A narrativa nasceu do encontro inesperado entre o dramaturgo Aimar Labaki e o livro Pulmão de aço, uma autobiografia escrita com os movimentos da boca por Eliana Zagui. Uma mulher que vive em uma cama de UTI do Hospital das Clínicas, em São Paulo, há quase quarenta anos por conta de uma poliomielite mal diagnosticada. “Descobri o livro por acaso numa livraria. Li, me fascinei por não ser um livro de autoajuda, nem uma lamúria. Era o texto de uma mulher de trinta e poucos anos e suas questões existenciais, iguais a qualquer um de nós. Acrescido da história escondida de toda uma geração que foi vítima da pólio e sobre a qual nada se sabe. Achei Eliana no Facebook. Pedi para visitá-la. Fui. Ficamos amigos. Pedi para escrever sobre ela. Levei um ano escrevendo. Depois, levamos mais cinco anos para conseguir viabilizar a produção”, lembra Labaki.

Da relação estabelecida, surgiu a peça teatral que preserva os fatos do livro, mas vem acrescida da poética do dramaturgo. Para viabilizar a construção da história, Labaki convidou duas Déboras: a atriz Duboc, e a diretora, Débora Dubois. “O Aimar fez uma colcha de retalhos. Ele coloca a gente dentro da história dela, trazendo alguns personagens, amigos da infância, alguns problemas iguais aos nossos ou parecidos. É uma peça muito emocionante. Você tem uma pessoa imobilizada na narrativa e no palco e acha que vai ser algo trágico e terrível, mas não é, porque ela (Eliana) não faz isso e não fez isso da vida dela. Sem dúvidas, tem momentos tristes, mas tem saídas geniais”, comenta a diretora.

Diante da imagem de uma mulher que teve os movimentos roubados por uma doença mal diagnosticada, uma das dificuldades para o trio de criadores foi escapar de clichês emocionais. Aliado ao texto generoso de Labaki, como descreve Dubois, que passa pelas dores sem crucificar situações ou personagens, a diretora se permitiu conhecer a personagem da vida real apenas depois de ler a peça e o livro. “Quando cheguei no quarto do hospital, era uma agitação enorme. Era a casa dela. Ela estava ali brigando, dando ordens. Percebi que não podia construir no palco a minha primeira imagem, não cabia”, relembra.

Vitalidade

Débora Duboc ganhou o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte de melhor atriz

Reunidas na sala de ensaio, as duas Déboras mergulharam no oceano de emoções da vida de Eliana, da história e, principalmente, do que nascia daquele encontro. “Tínhamos muitas conversas, choramos muitos, depois começamos a rir e descobrimos quais os momentos que podíamos trazer a força da Lili e dar voz a ela. Também tem a força que a Débora Duboc traz. As duas Déboras e a Lili viraram uma mistura”, descreve a diretora.

No palco, apesar de não ser um pedido do dramaturgo, Dubois optou por manter a atriz imóvel do pescoço para baixo, mantendo-a presa a uma cama/lápide durante todo o espetáculo. A diretora sabia que trabalhava com uma artista com potencial e, sobretudo, tinha a inspiração na vida concreta. Como referência, fez uma releitura de uma montagem com Maria Alice Vergueiro, direção de Rubens Rush e textos de Beckett, e trouxe uma trilha sonora que, em determinados momentos, funciona quase como um personagem, bailando com Lili e a plateia.

Apoiada nas modulações de voz, na expressividade do rosto e nos movimentos do pescoço, Débora Duboc encara o desafio de interpretar Lili. “Tenho que me atirar. Não posso pensar durante o espetáculo, tenho que estar integrada aos movimentos. E as emoções são muito fortes. A grande beleza dela (Eliana) é o sim que ela dá à vida”, comenta a atriz. Em oposição à mortalidade do corpo, tudo pulsa vitalidade na personagem, tanto no palco quanto na vida real. “Ela é preenchida por ações. Não é um trabalho que dá pra dar truque. Realmente, tive que ter um contato e me lançar nessa viagem, nesse encontro com esse universo. O poder de superação, de liberdade, de conquista da existência, que é muito profundo. Dá aquele frio na barriga, não é lugar fácil, mas é transformador”, acrescenta. Pelo trabalho, Débora Duboc conquistou o Prêmio APCA de melhor atriz.

Assim como Eliana na vida real, a trajetória da peça também foi árdua. Durante cinco anos, a equipe buscou viabilizar o projeto, porém não obteve sucesso. “Tinha certeza da potência desse texto e desse espetáculo, ao mesmo tempo, um receio, porque ele é muito radical, apesar de simples, é na veia. A hora que a gente conseguiu concretizá-lo, ele veio nessa onda de sim. É vibrante, um libelo à liberdade, à existência. Se a gente vai fundo nesse lugar, a gente só pode produzir afeto ao planeta, ter compaixão por todas as criaturas. Não tem como celebrar esse lugar sem se indignar com a opressão, com o abismo social. A Lili celebra o que a humanidade tem de mais bonito, por isso que ela é importante nesse momento. Ela é luz”, afirma Duboc.

Não à toa, o público verá no teatro uma diva, uma rainha de batom vermelho e olhos de gatinho. Com criação de Márcio Vinicius, o figurino carrega elementos hospitalares, como o cobertor e o tubo da traqueostomia, contudo, desenhados de uma maneira que remete a outro lugar. “Quando conheci a Eliana, parecia que existia uma distância entre a que estava na minha cabeça e a real. Então, pedi que ela fosse uma rainha e, quando ela foi assistir à peça, em São Paulo, era realmente uma rainha chegando”, comenta a diretora.  

Dramaturgo, diretor e atriz relatam que estão vivenciando algo quase inédito com A valsa de Lili. Além de um retorno do público com convidados, as pessoas os esperam ao final do espetáculo para falar sobre o impacto do trabalho. “A peça toca no lugar da existência que é comum a todos nós e a Eliana Zagui é uma mulher exuberante. Os feitos dela são incríveis. Ela pinta, escreveu um livro muito bacana, mas ela é um ser humano igual a qualquer um de nós. Por conta da condição dela, ela consegue ir muito fundo nesse lugar, desse existir. É uma viagem por escolhas; essa jornada é muito pertinente a todo ser humano”, pontua Duboc. 

Ao mesmo tempo que parece tratar de uma realidade distante, Lili compartilha de dilemas, emoções, necessidades e questionamentos que são intrínsecos e essenciais ao ser humano. “Ela redimensiona o seu olhar e também traz questões contemporâneas, traz a questão da vacinação que hoje eu acho que está em pauta, a questão da saúde pública. Ou seja, dentro dessa jornada tão pessoal, traz um universo complexo, social e político”, afirma a atriz. “As pessoas gostam de se ver e a Lili questiona a gente para pensar, para se emocionar. Com ela, aprendemos que vivemos a cada dia e que a gente está onde está porque quer estar, porque, se quisermos sair desse lugar, é você quem muda, é você quem faz, não existe limite. É a gente quem determina o limite. É possível transcender várias coisas”, acrescenta a diretora.

A valsa de Lili

No Centro Cultural Banco do Brasil. Em cartaz até 22 de março. De quinta a sábado, às 20h, e domingo, às 19h. Sessão com Libras dia 14 (sábado). Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia entrada e clientes BB com Ourocard). Sessão promocional no Dia da Mulher com 50% de desconto para todo o público. Vendas na bilheteria do CCBB e também no site www.eventim.com.br. Não recomendado para menores de 12 anos.


Três perguntas / Aimar Labaki


Por que usar valsa quando a protagonista não dança, não se move... Que valsa é essa?

É a valsa que Eliana e a personagem Lili — que são diferentes, é importante que se diga — optam diariamente por dançar, em vez de simplesmente aceitarem as limitações que a vida impõe, não só a uma tetraplégica, mas a cada um de nós. Lili diz na peça: “Eu posso não mexer nada do pescoço para baixo, mas a minha alma nunca deixou de dançar.”

Quais são as diferenças de Lili e Eliana?

Eliana é uma pessoa de carne e osso, com defeitos e qualidades. Isso é o que mais fascina nela - não se deixou definir por sua deficiência. Ela é mais, bem mais, que sua condição física. O que não faz dela uma pessoa perfeita, mas uma pessoa normal - com as mesmas questões, dúvidas e erros e acertos de qualquer um de nós. Lili é uma personagem, escrita por mim, que usa a história de Eliana, Paulo (seu melhor amigo, que mora com ela há quarenta anos no mesmo quarto) e todos os meninos e meninas que passaram pelo Hospital das Clínicas de São Paulo na época da infância deles para construir uma personagem - que ganha corpo no trabalho das duas Déboras Duboc e Dubois - na qual, é claro, como autor, apareço um pouco. Meus fantasmas e temas decorrentes, em tantas peças, ao longo desses 28 anos de carreira.

Como aproximar a realidade da Eliana da do público? Algo que parece ser tão distante se torna tão próximo de quem assiste.

Só vendo a peça para entender. É claro que a peça é muito emocionante, mas não é nada triste. É como a vida, dói, mas a gente quer mais!

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