Numa dinâmica animada e quente, ao embalo de mais um carnaval, a série de tevê 101 canções que tocaram o Brasil começa a partir de hoje, no canal Curta!, com a análise, entremeada, de vida e obra dos compositores e cantores que formam seleto grupo no universo musical do país. Sob depurado roteiro assinado pelo pesquisador, compositor e produtor musical Nelson Motta (ao lado de Pedro Motta Gueiros), e com direção de Roberto Oliveira, a pretensão da série com 13 programas é a de apresentar “uma trilha sonora da nossa história”, pelo que ressalta Nelson Motta.
Entre as certezas que ele cultiva está a de que “toda a canção conta uma história” e, ao listar uma centena delas, o pesquisador revolve milhares de sentimentos provocados nos ouvintes brasileiros, por mais de século. Vale lembrar que a pesquisa de 101 canções que tocaram o Brasil veio amparada pela produção literária de Nelson Motta que, há três anos, lançou um ótimo livro homônimo ao programa televisivo. A acuidade sonora e as sacadas de contexto histórico são qualidades de Motta; mas a série, como ele conta, foi idealizada pelo diretor Roberto Oliveira. A ilustração visual, igualmente, passou longe dele. “O mérito é do diretor Roberto Oliveira e de seus pesquisadores de imagem, editores, e artistas gráficos que vasculharam acervos e conseguiram resgatar imagens preciosas”, conta.
No miolo, e tendo como ponto de partida o exame da música Ó abre alas (1899), o programa de hoje (exibido às 23h30) celebra personalidades como Noel Rosa, Pixinguinha e Synval Silva. Chiquinha Gonzaga (que, ladeada por Joaquim Callado, fundou o choro nacional) desponta como nome de vanguarda e feminismo. Detalhes pessoais, como a coragem de ela expressar o amor por um homem 36 anos mais novo, não passam batidos.
Na série, algumas autorias musicais são contestadas e não falta centelha para polêmicas. Donga, por exemplo, teve um pouco da imagem arranhada ao se arvoar e tomar para si a autoria de Pelo telefone (1916). Para além da ação judicial que garantiu a coautoria de O teu cabelo não nega (1932) para os Irmãos Valença, a música de Lamartine Babo — longe das interpretações “dos patrulheiros da correção (política)” — é vista como “uma ode ao charme da mestiça”.
» Entrevista/Nelson Motta
Nas revisões feitas ao longo de pesquisas, houve transformação nas suas certezas iniciais? O senhor aderiu a revisionismo?
Nenhuma certeza foi mudada. Pesquisei, sim, velhas listas das “100 mais”. Contaram intuição e experiência. Não há nenhum bloco especial na série (em relação ao livro) e não há qualquer revisionismo: as canções são situadas no tempo de suas criações.
Evolução é uma palavra de ordem na música ou há espaço para retrocessos? Que compartimento, por exemplo,
ocupam manifestações da ordem do axé e do funk, no seu labirinto fonográfico?
É impossível haver retrocesso, seria como a terra rodar para o outro lado. O mundo anda para frente, se pior ou melhor é outra história. Sempre fui sincero com meu gosto musical, elitizado só no sentido de buscar o melhor do melhor. Gosto muito de funk, sou fã de Anitta e de Mister Catra, mas o funk carioca é metade som, metade imagem; como toda a música atual. E assim esta ganhando o mundo, como um ritmo irresistivelmente dançante. Criou uma linguagem própria e saiu da favela para o mundo. Gosto muito de samba-reggae e ritmos afro-baianos, mas nem tanto do axé (risos).
De que modo a música se tornou um irrevogável fascínio (e um meio de fazer dinheiro) para o senhor? Que impulsos e estímulos colocaram a música no seu sangue?
Quando tinha 22 anos e ganhei o I Festival Internacional da Canção de 1966 em parceria com Dori Caymmi, houve uma grana que dava para comprar um fusca e meio. Depois, participei por dois anos dos primeiros juris musicais da televisão criticando calouros e veteranos, em uma média de dois programas por semana.
O que deixa o Brasil tão representativo nas múltiplas sonoridades?
A maior qualidade da música brasileira é a sua diversidade. Há muitos ritmos, gêneros, levadas, estilos. Nenhum país do mundo, nem os Estados Unidos, tem tanta diversidade musical, que reflete a nossa diversidade étnica e cultural.
O trânsito junto aos profissionais da música foi capaz de criar estragos (risos)? Dado o senso
crítico e a objetividade de alguns reparos seus, o senhor detém desafetos no meio?
Jamais. Nunca perdi um amigo por causa de uma notícia ou crítica. Sempre preferi dar espaço para novidades e artistas na sombra. Caetano disse que sou o único crítico musical que fez grande carreira sem esculhambar ninguém…