Diversão e Arte

Mabel, a poesia dos Velloso

Irmã de Caetano e Bethânia fala com exclusividade ao Correio sobre a trajetória literária e a homenagem que fez à mãe, Dona Canô, em livro de gastronomia

Aos 86 anos, recém-completados, a professora Mabel Velloso mantém-se fiel ao seu ofício. Embora tenha sido mestra de várias gerações de estudantes em Santo Amaro da Purificação (BA) e em Salvador, onde mora há quatro décadas, a irmã mais velha de Caetano Veloso e Maria Bethânia se tornou conhecida como poeta. Autora de 35 livros, teve vários dos seus poemas musicados.

Entre os que gravaram esssas músicas estão Bethânia, a filha Belô Veloso, os sobrinhos Moreno e J. Veloso, Jussara Silveira e a cantora brasilense Cely Curado. Mas foi Paulo Costta, um dos ex-discípulos (morto precocemente na última quarta-feira) quem mais a celebrou. No álbum Meu Recôncavo, ele transformou em canções 17 poesias dela.

Mabel foi além do verso. Escreveu biografias de Caetano e Gilberto Gil, parte da coleção Mestres da Música no Brasil; e O sal é um dom: Receitas de Dona Canô, a matriarca da família Velloso. O livro, além das crônicas culinárias, traz também memórias do clã santo-amarense e imagens que ilustram, de forma didática, o conteúdo descrito.

Num dos trechos do longo prefácio da obra, o escritor baiano Vivaldo Costa Lima relata: “Aí estão as sopas e os ensopados; as frigideiras e os bifes; as moquecas, sarapatel e a maniçoba. E ainda a numerosa doçaria recriada nos bolos e nas cocadas personalizados, cada um, com a marca do ingrediente básico ou um apelido afetivo da intimidade familiar”.

A poeta mantém-se em permanente atividade, como orientadora educacional para pessoas da melhor idade, palestrante e contadora de histórias. Com uma memória privilegiada, sem nenhum esforço, lembra-se de fatos vividos ao longa da rica existência. Alguns deles relata nesta entrevista exclusiva ao Correio.



Poema musicado 
por Paulo Costta

Lua cheia

Vou sair de noite, pois tem lua cheia

Vou sem companhia, pois estou sem medo

Pois a lua é cheia!


Vou olhar o Dique todo prateado

Vou sentir o orvalho nascer e brilhar

Pois a lua é cheia


Vou cantarolar uma canção antiga

Vou sonhar venturas

Que nunca vivi, pois a lua é cheia


Vou correr na grama, tirar o sapato

Vou gritar bem alto

Quero ser feliz, pois a lua é cheia


Se alguém me vir e pensar besteira

Darei a desculpa que fiquei maluca

Pois a lua é cheia




Entrevista / Mabel Velloso


Que lembranças guarda do tempo de professora primária?
Tenho ótimas recordações das duas décadas em que me dediquei a educar várias gerações de santo-amarenses, do 1º ao 5º ano primário, na Escola Doutor Araújo Pinho. Depois vim morar em Salvador e passei a lecionar na Escola Maria Amélia Menezes Santos, em Pau da Lima, um bairro popular. Antes de me aposentar, fui também professora de crianças abandonadas pela família na Escola José de Sá, no Campo da Pólvora.


Desde então mantém-se longe das salas de aula?
Nada disso. Continuo exercendo o meu ofício, como professora de poesia e contadora de história na Faculdade da Felicidade, ISBA (Instituto Social da Bahia), em Ondina, para pessoas idosas. Aliás, contar história, tanto para adulto quanto para criança, é o que mais gosto de fazer atualmente. Vez por outra, me convidam para fazer palestra.


Quando a poesia passou a faze parte da sua vida?
Meus primeiros versos escrevi ainda criança, aos 7 anos, mas escondia dentro de uma caixa. Desde então não parei mais. Mas só vim a lançar o primeiro livro em 1980. Uma amiga leu alguns poemas, recheados de dor de cotovelo, escritos por mim, entre 1962 e 1970, e mostrou para Bethânia. Ela leu, gostou e mandou publicar, com prefácio de Aninha Franco. Este primeiro livro recebeu o título de Pedras do seixo.


Quantos livros a senhora lançou?
Trinta e cinco livros, mas nem todos são de poesia. Há alguns voltados para o público infantil, e as biografias de Irmã Dulce, Caetano Veloso e Gilberto Gil. As duas últimas para a série Mestres da Música no Brasil. E tem O sal é um dom — Receitas de Mãe Canô, que saiu pela editora Nova Fronteira.


O sal é um dom teve por base o livro de receitas de Dona Canô?
Minha mãe não tinha livro de receitas. Ela guardava tudo na cabeça. São receitas que aprendeu com a mãe dela e a mãe do meu pai, Zeca. Várias delas se transformavam em pratos, servidos nos encontros da família. Saboreávamos muitos pratos, tanto salgados quanto de doces.


Quem sugeriu o título do livro?
Ceta vez nosso irmão Bob (Roberto Velloso), que mora em São Paulo, ligou para minha mãe pedindo uma receita e quis saber a quantidade de sal que 
usaria. Ela então respondeu O sal é um dom. Eu estava ouvindo a conversa e achei que tinha ali o título do livro. Infelizmente, quando lancei o livro, em 2015, minha mãe já havia morrido.


Em Salvador há 40 anos, não tem saudade de Santo Amaro?
Moro em Salvador, mas vivo em Santo Amaro. Vou lá com alguma frequência e nunca falto às reuniões da família no Natal e durante a festa de Nossa Senhora da Purificação, de 24 de janeiro a 2 de fevereiro, quando participo das missas e da procissão. Era o período da Novena de Dona Canô, cantada por Caetano em Reconvexo, um clássico da obra dele.


Vários dos seus poemas foram musicados e transformados em canções. Tem na memória quem as gravou?
Lua, musicada por Roberto Mendes, e gravada por Bethânia, talvez seja a mais lembrada. Mas têm gravações com minha filha Belô Veloso, como Brincando, com melodia de Alexandre Leão; e uma mais recente, Lua cheia, de Jussara Silveira e Rodrigo Farias. Paulo Costa, um ex-aluno muito querido, que morreu há pouco, gravou um álbum, sob o título Meu Recôncavo, com 19 canções. Dessas, 17 são poemas meus que ele musicou; e há ainda Genipapo absoluto, de Caetano, que se refere a mim na letra. Bethânia canta na faixa Amargura; e Moreno, em Se eu tivesse uma casa e Não acorde o neném.


O médico baiano Carlos Jansen, que também é músico, é outro parceiro seu em Belô, gravada pela cantora Cely Curado. Recorda-se dele?
Claro, ele é um outro ex-aluno meu. Tomei conhecimento dessa música, só não lembrava de quem a havia gravado.