Diversão e Arte

Parasita, Coreia e nós

Filme de Bong Joon-Ho, consagrado em Cannes, suscita reflexões sobre a difusão das culturas periféricas e sobre a política cultural em Brasília



Um pouco retardatário, chega este texto no rescaldo da verdadeira avalanche midiática que foi o advento, por assim dizer, da nunca assaz louvada obra prima do cinema, Parasita, de Bong Joon-Ho, exibido nos mais importantes festivais do mundo, até a apoteótica acolhida e exaltação do Oscar como seu vencedor em várias categorias, como é do conhecimento de todos.

Este feito, verdadeira ponta de um monumental iceberg, veio consagrar o que já se prenunciava no cenário internacional desde quando a Coreia do Sul mostrou suas garras investindo pesado com os olhos postos na promoção de sua cultura a partir dos anos de 1990. Sendo que logo em seguida, em rápida progressão, em 2005, quando o rock coreano passa a realizar uma espécie de mix, pode-se dizer perfeito, acoplando-se  com as suas tradições musicais mais típicas, tudo respaldado por um bilionário investimento em dólares que empurrou o pop do país para além de suas fronteiras.

Uma drástica mudança da ótica governamental de um país com a sua história — egresso  há mais de sessenta anos de uma guerra sangrenta que o massacrou até a última fibra —  promoveu um salto de qualidade em sua economia, colocando-o  no páreo das vanguardas não só musicais, mas em toda linha da atividade artística, incluindo-se aí o audiovisual, instaurando a presença de um cinema até ali desconhecido.

A onda musical do pop coreano, que vem se assenhorando dos meios de comunicação mundo afora, incluindo a imensidão do streaming, foi antecipada por aqui  há um ano quando Jon Caramanica, do New York Times, disparou suas matérias sobre as boy-bands coreanas, à frente a garotada do BTS com seus terninhos e franjinhas o que marcou a cena internacional e superlotou estádios em todas as latitudes com um som avassalador.

Tratava-se já da gigantesca injeção de recursos que atestava a convicção de que só com cultura e educação se constrói uma nacionalidade respeitável e poderosa. Assim pensou o governo de Seul quando despejou em 2014 a bagatela de quase 27 bilhões de dólares na economia cultural. Para se ter uma ideia da “extravagância” coreana, basta compararmos essa cifra com o investimento do Brasil no mesmo setor e período: uma mixaria de 3 bilhões, ainda mais se nos cotejarmos com o tamanho e a população daquele país oriental.

Os efeitos logo se fizeram sentir no aumento do PIB, com o reaquecimento do mercado de trabalho, progresso social e político. Esse é o resumo da ópera cujo dó de peito se fez ouvir com estridência em Cannes e no Oscar, sobretudo neste último, onde Parasita arrebatou os mais importantes troféus, sendo que foi essa a primeira obra falada em outra língua que não o inglês a ser distinguido com o Oscar de melhor filme. Um legítimo arrasa quarteirão.

Onde se coloca então o “nós” do título acima? Coloca-se justamente ali onde se instala pavoroso contraste entre os modos de ver a economia e a política dos dois países, quer dizer, entre o Brasil e a Coreia do Sul. Na década passada, portanto antes da chegada de Jair Bolsonaro ao poder, os negócios da cultura se não eram um céu aberto, estavam a caminho de uma plena estruturação, em vias de alcançarmos uma melhor promoção do que vínhamos produzindo até ali.


Afirmação

No sentido também que se buscava obviamente a promoção do país e de sua presença no contexto mundial — onde o nosso cinema já se insinuava com grandes chances de afirmação, seguindo, quem sabe, o exemplo de nossa produção musical tão prestigiada lá fora como sabemos. É quando surge a besta fera da ignorância e da insensibilidade do atual governo, começando por destroçar sistematicamente o que havíamos construído a duras penas e sacrifício dos melhores segmentos e quadros, de empresas, de gestores, de técnicos e de trabalhadores. Todos estribados nas leis e nos órgãos que lhes davam apoio e os meios para avançar.

Hoje, com o Ministério da Cultura desfeito, um órgão da importância da Ancine praticamente paralisado e judicializado, com um capitão de mar e guerra como um tipo de interventor todo poderoso, a atividade do audiovisual no Brasil se encontra ameaçada, da mesma forma que o teatro, os museus, o patrimônio histórico e demais atividades artísticas e culturais impedidos de funcionarem à mingua de recursos e incentivos, o que termina por refletir negativamente no nosso PIB para o qual já contribuíamos significativamente.

Esse quadro acontece justamente quando o nosso cinema dava sinais de um formidável alento no ranking dos festivais internacionais e até no Oscar, onde nossos filmes têm alcançado notável participação. Estão nossos representantes distinguidos como foram Kleber Mendonça, Fernando Meireles e Petra Costa, com suas obras Bacurau, Dois Papas e Democracia em vertigem, que atestam a altíssima qualidade de nossa produção.

Felizmente, no âmbito local fomos bafejados pela sorte e estamos a caminho de nos reestruturarmos,  porque aqui também havíamos conquistado um nível de atividade bastante animador a partir do apoio com que contamos  dos poderes públicos que instituíram o Fundo de Apoio a Cultura — o  FAC, que nos últimos anos foi conduzido sob a orientação de Secretários de Cultura identificados com a área cultural, como foi o caso  mais recente de Guilherme Reis, que no curso de toda sua gestão nos proporcionou as condições para estabelecermos uma parceria com a Ancine e o Fundo Setorial do Audiovisual, carreando para a atividade cinematográfica de Brasília razoáveis somas destinadas aos nossos filmes.

Por uma benção do destino, o atual titular da pasta, Bartolomeu Rodrigues,  sempre manteve uma relação sensível  com o mundo cultural da cidade, desde a sua atuação no jornalismo,  que abraçou egresso que é dos cursos da nossa UnB, passando pelos principais órgãos da imprensa local, sendo reconhecido no meio como um líder de sua classe.

Não é demais lembrar a sua insopitável inclinação pelas letras como autor teatral e com um excelente livro de ficção publicado (3 Contos de Réis, edição do autor, 2013) com narrativa de intenso sabor regional que prende a atenção do leitor, sobretudo pelo humor legitimamente nordestino que o perpassa. As tratativas que promoveu junto aos  representantes da classe artística da cidade apontam para uma relação promissora,  seguindo as regras e os compromissos desde muito estabelecidos, o que pode levar Brasília a contribuir para rompermos o ciclo maldito em que toda cultura brasileira se vê envolvida sob o tacão de um governo autoritário e perversamente alienado. Nem que seja pelo simples fato de que sendo Brasília a capital do país não pode se furtar a dar o exemplo.