Diversão e Arte

Ficção delicada

Quatro obras de autores brasileiros contemporâneos lançados recentemente trazem para a literatura nacional histórias com personagens que nem sempre estão em primeiro plano


Eles se interessam por pessoas, por questões existenciais, pela dor do outro, mas também pela diferença, por olhar para o próximo como um ser humano e não como uma ameaça. Com livros publicados do fim de 2019 para cá, Marcelo Moutinho, Julián Fuks, Natalia Borges Polesso e Caetano Galindo levam a literatura brasileira para um patamar de delicadeza e de talento narrativo com histórias bem escritas e sensíveis.

O fato de ter crescido em Madureira, em uma família simples de comerciantes portugueses, tem uma certa relevância na maneira como Marcelo Moutinho constrói os personagens de Rua de dentro. Protagonizados por figuras normalmente à margem na produção literária brasileira, os 13 contos do livro trazem histórias de transexuais, moradores de favelas, casais homossexuais e vítimas do machismo.

Como em Ferrugem, livro de contos com o qual Moutinho ganhou o Prêmio Clarice Lispector, Rua de dentro faz um recorte com personagens de classe média baixa e, sobretudo, pessoas invisibilizadas pelos contextos sociais. “Muita gente tem falado em pessoas à margem da sociedade, mas não acho que estejam à margem. Elas fazem parte da sociedade, mas quando são objetos da literatura ou são colocadas em situações acessórias, sem protagonismo, ou vistas sob a lente de dois estereótipos: violência e falta de recursos”, explica o autor. A inspiração de Moutinho está nas calçadas do Rio de Janeiro, onde mora, no ônibus, nas esquinas da cidade e no dia a dia que passa distante do glamour da Zona Sul.

É o mesmo universo que interessa a Caetano Galindo nos contos de Sobre os canibais. As minúcias do cotidiano e as questões existenciais do ser humano, que já estavam presentes no livro anterior, Ensaio sobre o entendimento humano, voltam em uma prosa que se ancora na oralidade e na exploração da consciência. “Um gesto heroico histórico muitas vezes não me emociona mais que alguém que passa pela calçada da minha casa e de repente se abaixa para a amarrar o sapato. Sei lá. Parece-me um lembrete súbito da grande realidade, da realidade de verdade, premente, presente o tempo todo. Tipo tomar um copo d’água”, avisa o autor.


Os contos de Galindo são breves, funcionam, muitas vezes, como recortes e retratos e nascem de um desejo de “não explicar demais o que está ali”. Tradutor de grandes clássicos da literatura mundial – sua versão para o português de Ulysses, de James Joyce, é considerada uma das melhores — e professor da Universidade Federal do Paraná, Galindo diz que a maioria dos contos surge de uma imagem.

Nesse processo, ter trabalhado a fundo com tradução do melhor da literatura ajuda a manejar as técnicas narrativas. “Afia as ferramentas, né? O pouco que elas estejam afiadas”, conta. “Traduzindo você tem que abrir o capô das obras e ver como elas funcionam. Isso ensina muito sobre os mecanismos de condução literária. E eu tive muita sorte de só ter traduzido literatura muito boa. Aí, como que fiz anos de ‘estágio’ de escrita literária…”

Solidão

A ruptura e a solidão conduzem a trajetória de Maria Fernanda no romance Controle, de Natalia Borges Polesso. Durante a adolescência, a personagem se vê confrontada com a ruptura ao descobrir que sofre de epilepsia. Ao mesmo tempo, precisa lidar com os desejos efervescentes das descobertas da idade e a paixão pela melhor amiga, o que complica tudo. 



A sensação de isolamento social pauta boa parte do romance em uma escrita na qual a dor e a delicadeza se cruzam de forma muito bonita.“Controle é sobre solidão e desencaixe, mas é também sobre desejo e encontro. É sobre solidão porque tenta mostrar que, de certa forma estamos muito sozinhos no mundo, na vida, especialmente se não nos compreendemos, se ao menos não tentarmos nos compreender, nos amar”, explica Natalia, vencedora do Prêmio Jabuti em 2016 pelo livro de contos Amora. “Não sei se conseguimos conectar realmente com os outros sem fazer isso primeiramente com a nós mesmos. Acho que há um esforço mútuo das forças externas e internas da gente e quando isso acontece, e não é sempre e nem continuamente, é algo importante. Controle é sobre o exercício de viver.”

Também é densa a prosa de Julián Fuks em Ocupação, uma espécie de sequência de Resistência. Em capítulos curtos, o autor retoma seu alter ego, o personagem Sebastian. A narrativa alterna entre as conversas do narrador-protagonista com moradores de um velho prédio ocupado no centro de São Paulo, a doença do pai e a chegada de um filho. A incerteza diante de possíveis perdas e de uma vida que se renova conduzem Sebastian às reflexões sobre os próprios limites da existência humana.




Três perguntas / Marcelo Moutinho


Em que lugar da imaginação você buscou os personagens de Rua de dentro?
Uso muito como matéria- prima a experiência de caminhar na rua. Primeiro, porque acho que todas as cidades têm uma linguagem, meio caótica às vezes, como no Rio.O bordão de um camelô, uma fala entrecortada de um celular, o transporte público, há vários estímulos verbais, sonoros visuais que estão no espectro da linguagem de uma cidade. Quando o escritor está atento, acaba tirando daí uma matéria -prima interessante para material ficcional.


Você diz que hoje estamos lendo mais o que se escreve nas favelas. Por quê?
O que aconteceu é que tem uma cena literária nas favelas muito forte agora possibilitada pelos saraus e feiras literárias e isso acabou revelando autores. Mas esse espaço continua meio despovoado e imagino que isso está ligado a essa ideia que vidas comuns não rendem literatura.


Faltam personagens periféricos na ficção brasileira?
Eu sou de Madureira, moro na Zona Sul e acho que tem uma confusão entre representatividade e lugar de fala na ficção. É importante que haja representatividade das minorias, mas um escritor pode escrever sobre o que bem entender. O que acho é que as histórias acabam se repetindo por falta de circulação, mas circulação em lugares que têm o outro. Tenho muitos amigos que moram na Zona Sul e nunca foram a uma favela ou se foram, foram numa van numa expedição. Isso não é conhecer o outro, conhecer o outro é fugir do estereótipo. Quando você não conhece o outro, tende a ter mais medo. O Rio, como diz o Zuenir Ventura, é uma cidade em que as populações das áreas mais pobres vão às zonas de elite, seja para trabalhar, seja para usufruir dos equipamentos culturais, mas a maioria da elite não circula na cidade.