Se janeiro foi mês de pouquíssimas novas exposições, fevereiro começa com um cardápio variado e de muita qualidade para quem gosta de deixar o pensamento navegar pelas artes plásticas.
Discurso engajado
Melvin Edwards, 82 anos, nasceu em 1937, em Houston, no Texas. Talvez um dos piores lugares para um negro americano viver naqueles tempos. Na década de 1930, e até meados da década de 1960, vigoravam as leis Jim Crow, uma cartilha segregacionista que confinava os negros a um lugar de humilhação e subjugo cruéis. Edwards atravessou o século 20 e chegou ao 21 com uma visão bastante precisa do processo de luta pelos direitos civis e não há como separar essa condição de suas esculturas, embora ele faça questão de dizer sempre que é um artista abstrato e que sua obra não é uma coleção de comentários. Só isso já vale uma visita à exposição Melvin Edwards, em cartaz no Museu Nacional da República a partir de sábado (8/2).
Edwards começou a fazer faculdade de artes no início dos anos 1960, na Califórnia, e nessa época deu início à produção da série Fragmentos linchados, cujo título traz uma alusão ao tratamento dado aos negros durante a segregação racial. A abstração é a marca do artista, mas os materiais usados carregam uma simbologia que remete a tempos difíceis.
Há muito ferro, arame farpado e correntes na produção de Edwards. O conjunto evoca o aprisionamento e o martírio aos quais a população negra foi submetida durante anos de escravidão. “Ele se diz um escultor abstrato mas, obviamente, usa materiais reconhecíveis. É um material que você acaba fazendo uma associação com a trajetória dele: ele cresceu no sul dos Estados Unidos, em um local de cultura agrícola e escravidão. Então tem arame farpado, cerca, segregação. Não gosta de bater muito nessa tecla, se diz um artista abstrato que usa materiais históricos”, avisa Ricardo Kugelmas, curador da exposição.
A exposição em cartaz em Brasília tem um recorte especial. Nela entrou uma série de Fragmentos linchados realizada em São Paulo a convite de Kugelmas, que recebeu o artista para uma temporada de três semanas. Em um ferro velho, ele comprou os materiais para realizar 28 das 30 obras expostas no Museu Nacional. “Ele ficou impressionado, disse que os últimos 100 anos da história do Brasil estavam no ferro velho”, conta o curador. Uma série de aquarelas e uma instalação confeccionada com tecido comprado no Pelourinho, em Salvador (BA), também integram a exposição, dividida por quatro salas do museu.
Desenhos do silêncio
A ideia de trabalhar com um suporte e uma técnica simples guiou Elder Rocha pela série de 19 desenhos de Coração de passarinho, em cartaz na Alfinete Galeria, a partir desta sexta-feira (7/2). É a primeira vez que o artista faz uma exposição unicamente de desenhos. Autor de uma pintura cujo propósito passa longe da intenção narrativa, Elder é um artista experiente — são mais de três décadas de trabalho —, com passagens por dois Panoramas de Arte Brasileira, e tem interesse especial no que chama de “direto”. Por isso, no último ano, trabalhou apenas em desenhos. “Desenho é como se estivesse escrevendo um conto e a pintura, como se fosse um romance. A pintura consegue uma complexidade mais a fundo, mas o desenho me interessa por essa ideia do direto, do que é pouco”, explica. “E fiquei pensando: trabalho há tanto tempo que tenho que ser capaz de fazer algo que me satisfaça e seja feito com o mais básico possível.”
Esse pensamento é o desdobramento de vários trabalhos anteriores nos quais o artista buscava a ideia de limpeza e de silêncio. Desde a exposição Orifícios nonatos, há cerca de cinco anos, Rocha se propõe a investigar cada vez mais o efeito dos silêncios em seus trabalhos. “Eu estava fugindo de uma narrativa construída na pintura, sempre foi meu interesse escapar completamente da narrativa”, conta. “Óbvio que estou lidando com as questões da formalidade: o não discurso e a imagem com seu poder natural da evocação. Não quero dizer coisas. O que procuro na imagem é o que pertence só a ela.”
Parceria e experiência
Quando montou o projeto Curare, que a Galeria Casa recebe a partir desta sexta-feira (7/2) como parte do projeto Ocupação, Gisel Carriconde queria colocar em diálogo artistas jovens com curadores experientes. As mesmas oito duplas que ocuparam a galeria DeCurators durante 2018 agora chegam ao Casa Park com uma pequena reformulação que resultou na ampliação da experiência.
Como os trabalhos foram originalmente realizados para um site specific, no caso a pequena DeCurators, eles precisaram passar por uma releitura para ocupar a Galeria Casa. “Ficou um projeto muito amarrado, muito lindo. Vamos levar para a Galeria Casa uma espécie de rearranjo. Cada dupla fez um projeto além do site specific, com uma exposição de outros trabalhos. Vão ser oito instalações de parede e todos os trabalhos ou estiveram nessas exposições da DeCurators ou são variações para se adaptar ao espaço”, avisa Gisel.
A maior parte dos artistas, segundo Gisel, são jovens e estão começando a carreira, mas há também alguns mais experientes que nunca haviam passado por um acompanhamento curatorial. “São artistas em fase de formação, pessoas que nunca tinham tido essa experiência de trabalhar diretamente com o curador e não tinham o texto feito sobre seu trabalho”, conta.
Assim, Gustavo Silvamaral, Lino Valente, Ludmilla Alves, Lis Marina Oliveira, João Trevisan, Mariana Destro, Luciana Ferreira e Thiago Pinheiro foram acompanhados, respectivamente, por Ralph Gehre, Renata Azambuja, Átila Regiani, Cinara Barbosa, Bené Fonteles, Marília Panitz, Graça Ramos e Wagner Barja.
No zoológico
A pintora Alice Lara passou um mês no zoológico de São Paulo para observar as relações estabelecidas naquele espaço entre os animais e os visitantes. O resultado está em As ordens no paraíso, exposição que a artista inaugura nesta quinta-feira (6/2) na Referência Galeria de Arte. “Nas pinturas, falo um pouco sobre o que é esse espaço, sobre as coisas que acontecem ali, tentando pensar nas significações daquele espaço, como os seres humanos se comportam naquele ambiente e sobre a condição dos animais ali”, explica Alice.
Ela reconhece que o zoológico é um ambiente controverso e muito sujeito a debate, mas também identifica o local como um espaço de cuidados. “Os trabalhadores estão em busca de proporcionar o melhor que podem para os animais, que são animais de resgate ou que nasceram em cativeiro. É um lugar controverso, gera debates, porque ao mesmo tempo é um espaço que cerceia a liberdade. Entrei naquele lugar muito questionando a existência dele e hoje sei da importância dele. E entendo que é o resultado de políticas públicas nem sempre adequadas”, diz a artista, que há mais de uma década trabalha em pinturas nas quais a animalidade está sempre em primeiro plano.
Nas 15 pinturas da exposição, todas feitas durante 2019, Alice tentou refletir sobre a condição dos animais e suas vidas em ambientes de zoológicos. “Minha pretensão, mais do que defender ou acusar o zoológico, é de que as pessoas comecem a debater o bem-estar animal como uma questão importante para toda a sociedade. Todos nós estamos no mesmo meio ambiente e estamos conectados”, garante.
- Melvin Edwards
De 8 de fevereiro a 29 de março, de terça a domingo, das 9h às 17h, no Museu Nacional da República.
- Coração de passarinho
De Elder Rocha. Abertura sexta-feira (7/2), às 17h, na Alfinete Galeria (CLN 103, Bloco B, Lj 66). Visitação até 14 de março, de quinta a sábado, das 15h às 18h.
- Curare
Ocupação 12 — deCurators. Com obras de Gustavo Silvamaral, Lino Valente, Ludmilla Alves, Lis Marina Oliveira, João Trevisan, Mariana Destro, Luciana Ferreira e Thiago Pinheiro. Abertura sexta-feira (7/2), às 17h, na Galeria Casa (Casapark, 1º Piso). Visitação até 1º de março, de terça a sábado, das 14h às 22h, e aos domingos das 14h às 20h
- As ordens no Paraíso
De Alice Lara. Abertura quinta-feira (6/2), às 17h, na Referência Galeria de Arte. Visitação até 29 de fevereiro, de segunda a sexta, das 10h às 19h, e sábado, das 10h às 15h