Recado
“Lutar com palavras é a luta mais vã.”
Carlos Drummond de Andrade
O coronavírus e a guerra das palavras
Que medão! O coronavírus nasceu na China, mas causa estragos mundo afora. Governos de Europa, França e Bahia põem as barbas de molho. Preparam-se para a chegada do indesejado de todos. O Brasil, que mantém estreitas relações comerciais com Pequim, está de sobreaviso. Enquanto planeja providências, pinta uma questão. Por que coronavírus tem acento?
Disputa antiga
Quando o português usava fraldas, era pra lá de difícil acertar a sílaba tônica dos vocábulos. Rubrica ou rúbrica? Nobel ou Nóbel? Que rolo! As palavras, então, se reuniram em conselho. Discute daqui, briga dali, firmaram este acordo:
Artigo 1° – As terminadas em a, e e o, seguidas ou não de s, são paroxítonas: casa, casas, bate, bates, livro, livros.
Artigo 2° – As terminadas em i e u, seguidas ou não de qualquer consoante, são oxítonas: tupi, guaranis, bati, dividir, urubu, cajus, bumbum, alguns.
Artigo 3° – Quem se opuser ao acordo será punido com acento gráfico.
Conclusão: só se acentuam as palavras rebeldes.
Esperneios
As primeiras a espernear foram as proparoxítonas. Se aderissem, desapareceriam da língua. É que não sobrou nenhuma vogal para elas. Por isso todas são acentuadas: rítmico, álibi, satélite, fósforo, vendêssemos.
Inimizade eterna
As oxítonas também protestaram. Pura ciumeira. Elas foram brindadas com duas vogais (i, u). As paroxítonas com três (a, e, o). Por isso, a maior parte das palavras portuguesas são paroxítonas.
Rebelde
Oxítonas e paroxítonas são inimigas até hoje. O que acontece com umas não acontece com as outras. Coronavírus serve de exemplo. A palavra termina em u (seguido de s). Deveria pertencer ao time das oxítonas como caju, cajus. Mas passou pra equipe das paroxítonas.
Resultado: enquadrou-se no artigo 3º do acordo. Com ele, todas as paroxítonas terminadas em i ou u seguidas ou não de qualquer consoante. É o caso de táxi, difícil, ônus, álbum, álbuns, quórum.
Ora veja
Por causa do acordo, há fatos estranhos no reino das palavras. Por exemplo: hífen e éden têm acento. Mas hifens e edens não. Trata-se da velha guerra entre oxítonas e paroxítonas. As oxítonas terminadas em ens têm acento (armazéns, parabéns, reféns). As paroxítonas não (hifens, edens).
Sem dúvida
Rubrica e Nobel aceitaram os termos do acordo. Sem acento, rubrica é paroxítona termina em a. Joga no time de casa, mesa, cadeiras. Nobel é oxítona terminada em e seguida de consoante diferente de s. Pertence à equipe de papel, Mabel e pincel.
Leitor pergunta
Bolsonaro esteve na Índia. Que privilégio! Ele visitou um país alegre, cheio de cores e vozes. A ida à nação que tem a matemática no DNA me suscitou uma dúvida. Qual a diferença entre indiano e hindu?
Clemente Silvestre, Boa Vista
Quem nasce na Índia é indiano: Os indianos são falantes, sorridentes e coloridos. Com os indianos, aprendi a filosofia da não violência. Os indianos adoram filmes… indianos.
Hindu joga em outro time. Quer dizer seguidor do hinduísmo: Há hindus nos cinco continentes. Há templos hindus em sua cidade? Na minha há.
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Na frase: Ele matou os jovens a pauladas. Ocorre crase?
Severina Cavalcanti, Recife
Crase é o casamento de dois aa. Um é a preposição. O outro, em geral, o artigo. Pauladas é substantivo plural. Se estivesse acompanhado, o artigo seria as. A contração, às. Em “a pauladas”, o plural não tem vez. Conclusão: sem artigo, nada de união. Xô, acentinho!