Com o cinema proposto em mais de 50 anos pelo diretor Federico Fellini (morto em 1993, e que terá o centenário completado amanhã); o mundo conheceu personagens que não andavam necessariamente na Terra. Ora tateavam o céu, com devaneios e desejos inalcançáveis; e em muitas outras ocasiões, habitavam o mar, em cenas emblemáticas de E la nave và, e mesmo Amarcord (com a inesquecível passagem do transatlântico Rex). Mago das imagens, Fellini, entre outros feitos, agigantou a Fontana de Trevi — pouco mais do que uma exígua porção de água e que assumiu proporções monumentais, no mundialmente reconhecido A doce vida (1960).
No ano do centenário, o diretor terá homenagens como assegurada mostra de 22 filmes Fellini, il maestro (para março, no CCBB — leia abaixo). Os 100 anos de um dos mais paparicados cineastas do mundo (vale lembrar que recebeu quatro prêmios Oscar, na categoria de filme estrangeiro) coincidem, em soma de dois meios-séculos marcantes na vida dele: morreu 50 anos e um dia depois da união com a atriz, musa e esposa Giuletta Masina (estrela dos premiados A estrada e Noites de Cabíria) e eternizou, em filme (Entrevista), a celebração dos 50 anos da Cinecittà, aglomerado de estúdios que eram uma extensão da casa de Fellini. Isso, a ponto de ter sido velado por lá, quando da morte, decorrente de dois ataques cardíacos (o último, em outubro de 1993). Com menos de cinco meses de distância, Masina, que estrelou sete filmes do marido, também faleceu.
Influenciado pelo cinema surrealista, Fellini só deixou aflorar o estilo, quando se distanciou das origens — o neorrealismo italiano que ele mesmo ajudou a implantar. Forças alemãs ainda estavam na Itália, quando ele ajudou nos diálogos de Roma, cidade aberta, de Roberto Rosselini (com quem contribui ainda em Paisá), que ressaltava a rede de resistência dos compatriotas.
Roteirista de inúmeros projetos e autor de esquetes de rádio, o mestre do cinema viu seu talento derivado das caricaturas e charges, primeiro terreno das artes que materializavam as ideias barrocas, singulares e excessivas capazes de resumir sua obra. O apelo sensual desmedido presente em filmes como Satyricon (1969) e Roma (1972), esteticamente aboliam as normas da perfeição e dos modelos de beleza, salpicando na telona, para além de grotescas imagens, agitadas e generosas porções de carnes, em malabarismos dignos de circo.
Foi a partir do encantamento com o conteúdo dos fumetti (os balões gráficos das fotonovelas) que a decidida personagem Brunela demarcou a largada na direção solo de Fellini, no longa Abismo de um sonho (1952). Em plena lua de mel, ela segue, por Roma, atrás do fascinante Sheik Branco, galã protagonista das tramas lidas. Vistos como “benfeitores da humanidade”, em muitas das tramas agridoces criadas por Fellini, os artistas se esparramam em filmes com assinatura dele.
Em Mulheres e luzes (1950), codirigido por Alberto Lattuada, expôs crises amorosas brotadas por artistas do vaudeville. Bem antes de Ensaio de orquestra (1979), dedicado ao colaborador da vida, o músico Nino Rota; Fellini lapidou com sentimentos bem elementares a trilha da naïf Gelsomina (Giulietta Masina), condenada à tristeza, unida à trupe de circo, depois de comprada pelo futuro agressor, o brutal Zampanò (Anthony Quinn).
Quinze anos antes de enfrentar retaliações feministas, pelo efeito de Cidade das mulheres (1980), em torno de um homem abduzido por uma horda de vorazes fêmeas, Fellini deu a Masina um dos momentos únicos na tela, com Julieta dos espíritos, o primeiro longa colorido dele. Na fita, lascívia e libertação de fantasias devem se impôr aos rigores católicos de uma esposa em crise conjugal. De outra colaboração entre ambos, havia despontado Noites de Cabíria (1957), em que o glamour do cinema revestia a pobreza de vida de uma prostituta disposta a ser amada, e que retribui com alegria toda a falta de compaixão alheia.
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Diluir algumas dores é mágica que sai da cartola de Fellini, na realização de obras-primas como Amarcord (1973), em que a levada do fascismo cede lugar para a felicidade, com relato de episódios de energéticos bailes, corridas de carros e iniciações sexuais. Relatos da juventude litorânea, na Rimini (cidade em que seria enterrado) exaltada por Amarcord, balizariam ainda Os boas-vidas (1953), concentrado no destino de um punhado de desocupados cujo líder Fausto (Franco Fabrizi) é incorrigível mulherengo. O filme rendeu o Leão de Prata, no Festival de Veneza.
Reclamada como novidade contemporânea, a composição híbrida, que funde ficção e realidade em filmes, já corria solta na produção do ex-jornalista Federico Fellini, que, hoje, dadas as brechas largas, bem poderia disseminar fake news. Celebrado mitômano, ele fabulou a autobiografia, em fotogramas de filmes como I clowns (1970), Entrevista (1988) e Diário de um realizador (1969), para além dos painéis de plena ficção do porte de Roma (1972). Flertando com o simpático descaramento de Fellini, artistas como Damian Pettigrew e Ettore Scola, apostaram, respectivamente, em longas como Fellini: Eu sou um grande mentiroso (2002) e Que estranho chamar-se Federico (2013).
Delirante, Fellini, que colecionou feitos como o de contracenar com Anna Magnani (em segmento de O amor, de 1948), era capaz de correr riscos como o de extrapolar o orçamento das filmagens de Roma; e poeticamente, desconversar da origem das tintas carregadas de suas coloridas memórias: “A pérola é a autobiografia da ostra”, chegou a ressaltar. As fraturas no realismo, trouxeram descaminhos gloriosos para o diretor que alinhavou sonhos, flashbacks e devassa psíquica, tendo por tema (e aparato de projeção) o próprio cinema, em obras como A doce vida (1960) e 8 ½ (1963). Na mescla de hedonismo e destituição moral, o diretor comprou briga com entidades religiosas que o descreveram como um “pecador público”.
Vindo do êxito de 1958, Os eternos desconhecidos, Marcello Mastroiani desbancou a indicação de Paul Newman para estrelar A doce vida (Palma de Ouro, em Cannes). Viria a se tornar alter-ego de Fellini, em clássicos. Foi cooptado para A doce vida, depois de ver um desenho do mestre que resumia seu personagem: excitado, e cercado por várias sereias. Indicado a quatro prêmios Oscar, o longa registrava uma decadência elegante, encharcada de farras, estrelada por tipos como o desnorteado repórter Rubini (Mastroiani), o colega e fotógrafo Paparazzo (Walter Santesso) e a estrela de cinema Sylvia (Anita Ekberg). Ao lado de Claudia Cardinale e Anouk Aimée, Mastroiani ainda empreendeu a jornada orgíaca do cineasta esgotado Guido Anselmi, em crise com a arte, mas ligado no frenesi de uma vida mundana.
Três perguntas // Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida, curador
Dentro de toda uma elaboração visual, mas com tramas simples, o apelo de Fellini trilhou popularidade de público?
Não, ele não era unanimidade e não obtinha fartas bilheterias. A doce vida foi um sucesso de público, mas a partir do final dos anos 1960 ele começa a ter muita dificuldade para encontrar financiamento para filmar, e suas produções se tornam mais esparsas. Ele filma para a tevê (Os palhaços), com dinheiro de Hollywood (por exemplo, em Casanova)... Seu grande sucesso de público, na fase final da carreira, foi Amarcord (1973).
Fellini era passível de erro? Quais são os títulos menos qualificados?
Sim, os filmes da fase final da carreira de Fellini dividiram bastante a crítica. Embora Satyricon e Casanova sejam hoje considerados obras maiores de Fellini, não foram bem recebidos na estreia. Entrevista vive um ressurgimento, mas A cidade das mulheres e A voz da lua ainda são, em geral, mal avaliados.
Na contemporaneidade, onde Fellini faz mais falta?
Fellini faz falta porque é um cinema que prima pela criatividade, pela capacidade de inventar histórias que misturam realidade e ficção, que arregimentam sonhos e fantasias, memórias e nostalgia. Ao mesmo tempo, é um diretor capaz de tecer contundentes críticas à sociedade contemporânea, representada pela tevê e pelo consumismo, onde impera a vida mundana.