“... faltavam poucos minutos para que se cerrassem 40 anos de literatura gloriosa...
Neste momento, precisamente ao anunciar-se este juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta...
Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16 a 18 anos no máximo. Perguntam-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo... Ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo, tivera o pensamento de visitá-lo... Se não lhe era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas do seu estado.
E o anônimo juvenil — vindo da noite — foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou e, sem dizer palavra, saiu... Naquele meio segundo — no meio segundo em que estreitou o peito moribundo de Machado de Assis — aquele menino foi o maior de sua terra.”
Foi assim que Euclides da Cunha, autor de um livro que teria lugar assegurado em qualquer outra das línguas cultas no Universo, registrou os derradeiros momentos do maior escritor da língua portuguesa.
Mais uma cena do fim:
“Quando uma pessoa querida lhe perguntou, quase à hora de morte, se queria que viesse um padre, murmurou: ´Não quero... Não creio... Seria uma hipocrisia...´
Sente-se que essa é uma frase autêntica; não foi arranjada para uso da posteridade. E vê-se nela o mesmo homem de sempre, descrente, mas polido e honesto. Deu a recusa; mas parece ter tido receio da rudez da negação e explicou-lhe os motivos, como se com eles se desculpasse”.
O texto acima faz parte de uma resenha, publicada em 1920, pelo pernambucano Medeiros e Albuquerque sobre a biografia de Machado de Assis escrita por Alfredo Pujol.
Por que dois textos sobrepostos? Porque foi extremamente difícil escolher uma só abertura para esta análise ligeira de Escritor por escritores — Machado de Assis segundo seu pares, belíssimo livro lançado agora pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Reunindo 29 artigos, seis cartas, três poemas e 3 trechos de peças de teatro, é obra importante (embora inicial, pois será seguida de outros dois volumes) porque reúne o que mais de mais importante se escreveu sobre Machado de Assis entre 1908, ano de sua morte, e 1939, quando se comemorou o centenário de seu nascimento.
Nesses textos todos temos a confirmação daquilo que todos sabem — que o homem era tímido, pudico ao extremo, avesso às pancadarias literárias da época, ferrenhamente discreto, inimigo dos derramados, indiferente às paixões políticas, lhano no trato, desinteressado da religião, sofria de epilepsia, padecia de gagueira, era funcionário público exemplar, homem amoroso de uma só mulher e o mais dedicado dos operários das letras desta nação ágrafa.
Só se registra no livro uma faísca de uma reação, anotada pelo cearense Araripe Júnior. “Uma vez, interpelando-o sobre o seu schopenhauerismo, vi-lhe um fuzil nos olhos, quase agressivo porque o tinha apertado em um argumento de otimista”.
E o mesmo jornalista menciona outra atitude rara:
“Até quando pretende você dar-me pancada?”, teria dito Machado a Araripe que, numa crônica relativa a Quincas Borba, teria afirmado que as mulheres do livro eram “incolores, sem expressão”, porque seu autor era diferente daqueles outros que haviam criados grandes figuras femininas porque eram, todos eles, “eméritos conquistadores”.
Além de dezenas de episódios curiosos ou significativos da vida do homem que morou com a esposa por 20 anos em uma casa modesta no Cosme Velho, é importante registrar aqui as duas únicas vozes dissonantes num livro de incontáveis encômios. Mario de Andrade e Lima Barreto são esses divergentes.
Comecemos com um trecho de Lima Barreto: “Machado era um homem de sala, amoroso das coisas delicadas, sem uma grande larga e ativa visão da humanidade e da arte. Ele gostava das coisas decentes e bem postas, da conversa da menina prendada, da garridice das moças, Quem inventou esse negócio de humoristas ingleses para ele foi o grande José Veríssimo...”
Já em carta a Austregésilo de Athayde a mordida é com a boca escancarada: “Gostei que o senhor me separasse de Machado de Assis. Não lhe negando os méritos de grande escritor, sempre achei no Machado muita secura de alma, muita falta de simpatia, falta de entusiasmos generosos, uma porção de sestros pueris”. E mais: “Machado escrevia com medo do Castilho e escondendo o que sentia, para não se rebaixar; eu não tenho medo da palmatória do Feliciano e escrevo com muito temor de não dizer tudo o que quero e sinto, sem calcular se me rebaixo ou se me exalto”.
Passemos a Mário de Andrade que, em 1939, escreveu três artigos sobre o autor de Dom Casmurro, nos quais examina mais atentamente a poesia às figuras femininas do bruxo. O primeiro texto começa assim: “Talvez eu não devesse escrever sobre Machado de Assis nestas celebrações do centenário... Tenho pelo gênio uma enorme admiração, pela obra dele um fervoroso culto, mas. Eu pergunto, leitor, pra que respondas ao segredo de tua consciência; amas Machado de Assis?”
À frente escreve: “E aos artistas a que faltem esses dons de generosidade, a confiança na vida e no homem, me parece impossível amar”.
Essa impressão negativa Mário de Andrade vai escancarar em uma carta que enviou a um editor: “... se adoro a obra do Machado como arte, pouco encontro nela como lição e simplesmente detesto o homem que ele foi”.
Elogio de Monteiro Lobato
Os elogios irrestritos ao escritor Machado de Assis e aos seus contos e novelas são multidão. Um que se destaca é do também ferino Monteiro Lobato, gênio editorial, homem público de primeira linha, autor de muitos contos extraordinários e criador da nossa literatura juvenil.
Falando da origem humilde: “E vendeu balas em tabuleiros, e ajudou missas com coroinha, e fez-se tipógrafo - meio de ainda no trabalho manual ir aperfeiçoando sua cultura nascente. Aproxima-se dos letrados, ouve-os com respeito, assimila o que pode... Aprender foi a sua primeira paixão, e vai aprendendo sobretudo a observar o jogo de marionetes entre si, na eterna luta miudinha da vida - a enganarem-se mutuamente, a pensar uma coisa e dizer outra..”
E mais: “Sobe. Firma o lado econômico da vida acarrapatando-se ao Estado. Compreende bem cedo que no Brasil só como funcionário público teria o sossego da ausência de cuidados materiais, propício à realização do seu sonho instintivo — perpetuar-se na forma de um nome.”
E no seu estilo irreverente, porém sempre agudo, o pai de Emília manda mais esta: “Machado ensinou o Brasil a escrever com limpeza, tato, finura, limpidez. Criou o estilo lavado das douradas pulgas do gongorismo, do exagero, da adjetivação tropical, do derramado, na enxúndia, da folharada intensa que esconde o trono e o engalhamento na da árvore”.
Para encerrar, escolhemos ficar com um trecho do artigo de Mário de Alencar, filho mais moço de José de Alencar, espécie de filho adotivo de Machado, considerado por todos aquele que chegou mais próximo do coração do homem que escreveu, em Memórias póstumas de Brás Cubas: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
Conta Mário de Alencar: “Um dos seus grandes sentimentos, nesses últimos dias, foi o que ele próprio chamou, no Memorial, de ´orfandade às avessas´. Chega a não entender mais o pensamento derradeiro de Brás Cubas e tinha saudade dos filhos que não tivera. Sentia, e não se vexava de confessá-lo, inveja de quem os havia, não importava em que número. O essencial, o bom era tê-los para a animação e consolo da vida, particularmente da de um solitário como ele de alma e corpo”.
E segue o arguto e sensato Mário de Alencar: “Tinha e não tinha razão. Nada é absoluto, e eu refletia sem dizer-lho que os filhos, se podiam, se haviam de ser o consolo de sua velhice, podiam ter sido um tropeço ao escritor nos primeiros tempos de sua vida... Como o pai doente e apreensivo, suportaria os pavores das moléstias dos pequenos e cuidaria do futuro deles? E como havia de aumentar os recursos da subsistência? Seria um pai carinhoso e dedicado e acrescentaria os seus bens para alimentá-los e educá-los; mas o escritor seria vencido e sacrificado pelo pai, e a literatura brasileira não possuiria talvez as melhores obras que ele deixou, concebidas e escritas com o vagar e o amor da arte”.
Só mesmo alguém que teve como “pais” dois monstros das letras conseguiria falar com tanta sensibilidade da luta essencial, sempre mencionada por todos os escrevedores daqui e de alhures — a luta entre o feijão e o sonho.
Escritor por escritores - Machado de Assis segundo seus pares
Hélio de Seixas Guimarães. Ieda Lebensztayn. Imprensa Oficial de São Paulo, 402 páginas