Correio Braziliense
postado em 12/01/2020 06:00
Uma das produções internacionais de maior repercussão dos últimos tempos mostra o encontro de um alemão com um argentino e tem a assinatura de um brasileiro. O cineasta Fernando Meirelles, o mesmo de Cidade de Deus, é o diretor de Dois papas, produção da Netflix que imagina o convívio e as conversas entre Bento XVI (Anthony Hopkins) e Jorge Bergoglio, interpretado por Jonathan Pryce, pouco antes de o cardeal latino-americano se tornar o papa Francisco.
Pontuado por diálogos espirituosos, escolhas musicais surpreendentes e com piscadelas ao Brasil, o longa-metragem acumula indicações a prêmios importantes e tem provocado reações entusiasmadas nas redes sociais desde a entrada no serviço de streaming, no início de dezembro. Meirelles se diz impressionado com “a abrangência e espectro” da repercussão: “Vai das amigas da minha tia Odila, de 86 anos, ao Leonildo, que veio ver um vazamento em casa na semana passada e deve ter, no máximo, 23 anos. Taxistas, balconistas e garçons não falavam comigo sobre meus filmes, agora estão falando.”
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Dois papas é o seu longa-metragem de maior repercussão desde Cidade de Deus. Boa parte dos comentários em redes sociais é elogiosa, inclusive de pessoas agnósticas. A que atribui o sucesso?
O filme está bem-feito. Roteiro, atuações, fotografia, montagem, música, tudo funciona bem... Mas há muitos filmes em que tudo funciona bem, mas não colam. Se eu soubesse o que fez este filme “pegar”, eu repetia e estava feito, mas não tenho ideia. Meu chute é que ajudou a ideia de tolerância que o filme traz. Saber escutar o outro e conviver com quem discordamos são mercadorias em falta. A esperança de que é possível uma convivência civilizada e até afetiva deixa aliviado quem assiste. Ou vai ver que as pessoas simplesmente gostam de Dancing queen (a música do ABBA está na trilha sonora). O que sei eu?
O caminho para a produção e exibição de dramas de temática adulta, como História de um casamento e Dois papas, é mesmo o streaming? As salas de cinema ficarão destinadas aos filmes-evento, como os de super-heróis?
Pela sua base de público, filmes que são de nicho para a produção convencional são viáveis na plataforma. Parece doido dizer, mas a Netflix pode ser a salvação do cinema de arte e do cinema independente. Espero que os exibidores, uma hora, compreendam que o negócio deles mudou e passem a exibir filmes que estarão na plataforma em seguida. No final do ano passado, a O2 Play, distribuidora da qual sou sócio, distribuiu O Irlandês (de Martin Scorsese, produção da Netflix) e Dois papas. Brigamos muito para conseguir salas para esses dois filmes, com pouco sucesso. Os donos de cinemas se recusaram a exibir por causa da janela curta entre a sala e a plataforma, mesmo sabendo que teriam de duas a três semanas antes de os filmes estarem disponíveis. Não entendo por que esse faturamento de três semanas não interessa. Espero que esta visão mude. Creio que as salas ficarão mais voltadas para filmes-evento se mantiverem esta postura.
Espera indicações de Dois papas ao Oscar? Quais seus filmes favoritos entre os potenciais concorrentes?
Creio que temos chances nas mesmas categorias que fomos indicados para o Globo de Ouro e o Bafta (premiação britânica). Na minha categoria não há chances. Mas o que gostaria mesmo seria uma indicação de fotografia para Cesar Charlone (indicado por Cidade de Deus, em 2004) e de montagem para Fernando Stutz. Mas pode ser que não haja nada. É como o futebol: uma caixinha de surpresas, como sabemos. Meu favorito do ano é Coringa, só não votei nele porque votei em mim mesmo. 1917 não tem uma história tão boa, mas a realização faz dele um filme que precisa ser assistido. Honeyland merecia o Oscar, mas deve perder para Parasita.
O que achou da safra de filmes premiados em grandes festivais em 2019 que retratam aspectos das consequências da desigualdade social, como Parasita, Bacurau e mesmo Coringa? Esse tema também o interessa?
O tema não me interessa, me assombra. Gosto muito do viés que cada um desses filmes encontrou para falar sobre desigualdade, sem serem óbvios ou explicitamente militantes. Eu mesmo repeti este tema em quase tudo que fiz no cinema: Domésticas, Cidade de Deus, O jardineiro fiel e até em Dois papas a crise de refugiados e a exclusão aparecem, mas nunca fui tão criativo. Recebo roteiros para dirigir, mas simplesmente não consigo mais me entusiasmar por histórias que são apenas boas histórias se não funcionarem como um espelho para o mundo. Vivemos uma crise civilizatória, caminhamos para um futuro esquisito, é isso que me interessa entender e há muitas maneiras de falar isso, poéticas, fantasiosas, tudo vale. Estes filmes mencionados são originais em suas abordagens. Eu também colocaria Atlantique (indicado pelo Senegal para concorrer ao Oscar) nesta lista, é mais um filme poético ou de gênero sobre excluídos. Se você tem algo a dizer, qualquer gênero serve para isso.
O teólogo Leonardo Boff, que conviveu com Jorge Bergoglio e Joseph Ratzinger, teceu elogios em artigo ao filme, dizendo que Dois papas “é uma bela metáfora da condição humana”. Mas fez uma ressalva sobre a forma que Bento XVI é apresentado: “O filme não retrata a figura fina e elegante que o caracteriza”. Como você responde a esse tipo de crítica que destaca as diferenças entre as pessoas e os personagens?
Li o artigo. Foi o que mais gostei entre tudo que li a respeito do filme. Boff está absolutamente certo em relação ao que diz sobre Ratzinger. Também acho que o verdadeiro papa jamais gritaria daquela maneira. Aquele foi o único take no qual Hopkins levantou a voz. Depois de rodar a cena, ele me pediu para não usar o grito: ele sentia que estava errado. Mas, ao montar a cena, o grito criava um silêncio posterior que pontuava bem toda a sequência. Entre ser fiel ao papa ou criar drama, não resistimos e optamos pela segunda via. É um filme, afinal, não um documentário. Um filme com o verdadeiro Ratzinger seria muito chato, aliás; o carisma dele é inversamente proporcional ao seu intelecto. Não gostava de Ratzinger quando comecei (o projeto), mas aprendi a admirá-lo.
Com as mudanças nas diretorias e a paralisação dos projetos na Ancine, para onde vai a produção audiovisual brasileira?
Muitos colegas estão parados esperando a burocracia ser destravada. Um ano já teria dado tempo para ter organizado o setor, que, aliás, estava saudável em 2018. Não sou paranoico, mas é difícil não achar que o desmonte não seja intencional. Curioso que as áreas que são mais caras para mim, e que julgo importantíssimas para qualquer país desenvolver, são justamente as que estão em piores condições no Brasil: educação, meio ambiente e cultura. Sem estas coisas não se constrói um país, não conheço nenhum exemplo. Sem nióbio é possível, conheço dezenas de exemplos.
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