Diversão e Arte

O baú de João Cabral

Na passagem do centenário do poeta, serão lançados dois volumes, um com a poesia completa e outro com a prosa




O baú do poeta João Cabral de Melo Neto parece inesgotável. Ele nasceu em 9 de janeiro de 1920. Na passagem dos 100 anos, ganhará novas edições da poesia e da prosa completas. O poeta e professor Antonio Carlos Secchin organiza o volume da poesia de Cabral, a ser lançada pelo selo Alfaguara, da Companhia das Letras, em junho. No segundo semestre, será a vez do lançamento de um volume de prosa. Incluirá entrevistas, discursos e vários textos dispersos. A organização desta parte da obra de Cabral, que, antes de poeta, pretendeu ser crítico de arte, é do pesquisador Sérgio Martagão.

Cerca de 40 poemas inéditos serão incorporados à nova edição. Esse é o terceiro conjunto da obra completa de Cabral coordenado por Antonio Carlos Secchin. O primeiro foi em 2008 para a editora Nova Aguillar. O segundo, em 2014, numa coedição da editora Glaciar, de Lisboa, com a Academia Brasileira de Letras: “Creio que esta será a melhor de todas as edições”, comenta Secchin. “Ela parte do patamar alcançado pelas  anteriores. Vou acrescentar cerca de 40 alterações em versos indicadas por Cabral em caderno que descobri e não são consideradas. Pela primeira vez, vamos ter a obra como ele queria”.

O professor e pesquisador Sérgio Martagão garimpou e reuniu material para o volume sobre a prosa durante 10 anos, com a colaboração de Ednéia Ribeiro, quando fazia doutorado. As descobertas ocorreram no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa. Eles pinçaram os 40 poemas que serão incorporados à  poesia completa, coordenada por Antonio Carlos Secchin.

Entre os inéditos, destaca-se uma conferência de 30 laudas, intitulada A poesia brasileira, escrita no Recife, em 1954, mas nunca publicada, segundo depoimento do próprio poeta no manuscrito, informa Ednéia: “Apesar de pesquisas em jornais e em outros documentos da época, não foi possível identificar se houve algum evento no Recife nesse ano, no qual a conferência teria sido apresentada”.

Há, ainda, cerca de 30 textos curtos (artigos de jornal e programas de rádio) sobre escritores e intelectuais, como Cecília Meireles, Joaquim Cardozo, Luís Santa Cruz e Otávio de Faria. Sem contar os prefácios, discursos e outros textos curiosos, como um editorial publicado no jornal A Vanguarda, de Joel Silveira, na ocasião da morte de Getúlio Vargas. “Entre essas descobertas, a grande surpresa fica por conta do inédito A poesia brasileira,” comenta Ednéia. “Primeiro, porque é um texto mais longo e complexo, à altura dos já conhecidos Poesia e composição e Da função moderna da poesia. Depois, porque faz reflexões importantes sobre a situação da literatura produzida no Brasil em meados dos anos 1950, fazendo distinção entre poetas profissionais e poetas circunstância e bissextos”.

Ednéia comenta que, embora a tendência seja relacionar a prosa-ensaística de João Cabral a fatores estéticos e a aspectos voltados ao próprio fazer literário, seus textos em prosa, como demonstram a tese Da função materna da poesia e a conferência inédita A poesia brasileira, indicam certa preocupação com processo de comunicação entre a poesia e o leitor comum. “Como um dos mais cosmopolitas dos escritores brasileiros, João Cabral escreveu sobre intelectuais e artistas brasileiros e de outras nacionalidades”, destaca Ednéia.

Com seu olhar perspicaz sobre obras de artes, artistas, escritores e intelectuais de diferentes épocas e lugares, como já é sabido em muitos dos seus versos de cunho metalinguístico, tem muito a contribuir também em prosa. “Se o seu grande anseio era de fato ser um crítico de arte, conforme explicitou muitas vezes, como no seu Depoimento para posteridade (Museu da Imagem e do Som — MIS) “escrevi poesia enquanto me preparava para ser crítico”, ele conseguiu atingi-lo com maestria, tornando-se um crítico tanto em prosa quanto em verso”.



Versos afiados

“O sol de Pernambuco
é sol de dois canos
de tiro repetido:
o primeiro dos dois
o fuzil de fogo
incendeia a terra:
tiro de inimigo”

“A cabra deu ao nordestino
um esqueleto mais de
dentro: o aço do aço
que resiste quando o
aço perde o seu cimento”

“Uma educação pela pedra:
por lições; para aprender da pedra,
freqüentá-la; captar sua voz inenfática,
impessoal (pela de dicção ela começa as aulas)’.

João Cabral a palo seco




Quatro perguntas / Antonio Carlos Secchin


O que a passagem dos 100 anos de João Cabral propicia para se ler, reler e repensar João Cabral de Melo Neto? Que aspectos merecem a atenção?
Eu penso que o grande poeta não precisaria de uma efeméride para ser lido. Estudo a obra de Cabral há 40 anos. Vejo a relevância dele tanto do ponto de vista da forma quanto do conteúdo. Ele enfatiza o conhecimento técnico contra uma tradição do improviso ou da inspiração. Esse lado da forma é que sustenta a permanência do escritor. Aliando a isso, gostaria de ressaltar o tratamento diferenciado que dá à temática social. Desde Castro Alves se fala do social, mas nunca como na poesia de João Cabral. Não é uma poesia paternalista, dona da verdade, que assuma o bem contra o mal, tentação da poesia engajada. A realidade é tão escandalosa que o simples fato de ser retratada é uma denúncia. Não é preciso colocar um trombone.


João Cabral ainda é tido apenas na conta de um poeta construtivo. Mas não é possível afirmar que existe uma dimensão visceral em tensão com a construtiva?
Não tenho dúvida. O tempo inteiro, a poesia de Cabral é emoção sob controle. Temos de frisar um aspecto, ele nunca foi contra a emoção. Mas Cabral acha que a emoção é um efeito do poema e não uma causa. A emoção estaria do lado do leitor. Se a emoção tomar conta do poeta, ficará cheio de lágrimas e não fará o poema. Cabral submete a emoção ao imperativo da construção e da forma. Quem não se emociona ante O cão sem plumas ou Morte e vida  Severina?


João Cabral disse que, só conseguiu ser poeta depois de ouvir a lírica torta, gaguejada e fragmentada de Carlos Drummond de Andrade. Como João chegou a construir uma voz tão singular?
Acho que conseguiu alcançar essa voz quando se desvencilhou da herança dos brasileiros. Se separou de Drummond e Murilo, se abasteceu nos espanhóis. Nos anos 1940, tivemos a explosão da poesia engajada de Pablo Neruda. Depois, a geração de 1945, aquela vertente metafísica de Claro enigma, vai para a abstração ou para o soneto. Isso não ficou sem consequência, é o momento em que Cabral se afasta de Drummond. Analiso essa relação conflituosa em um dos capítulos do livro Uma fala só lâmina, que será relançado com versão ampliada e atualizada.


Se João Cabral fosse inglês ele teria ganhado o Prêmio Nobel?
Acho muito difícil por dois detalhes. Primeiro, a poesia traduzida perde muito, principalmente quando o poeta tem essa consciência da forma. Ele tem a dimensão universal, mas o componente pernambucano talvez teria a dificuldade de ser assimilado por um leitor estrangeiro.