Com vozes masculinas e femininas, histórias que mergulham em transes existenciais e emergem com a certeza de que viver é, como aponta um livro bíblico, “correr atrás do vento”, o romance 2+1 conduz o leitor por um labirinto angustiante e, muitas vezes, claustrofóbico. Narrado pelos personagens Manoela e Izac, o quarto romance de Rogério Menezes nasceu do que ele identifica como uma profunda pulsão de vida e morte movida por um transe que tem origens na vida do próprio autor. “O substrato que o gerou começou a se consolidar a partir de 2002, quando passei a viver série de crises profissionais, pessoais e existenciais, que me sacudiram e me viraram de ponta-cabeça. Mais: o Brasil chafurdava cada vez mais na miséria social e na corrupção política, que acabaria resultando no transe de patologia política e social que atravessa hoje”, conta.
A psicanálise não foi suficiente para o escritor lidar com o momento e Menezes encontrou refúgio na escrita e na leitura. Revisitou referências que aparecem citadas no romance, como Orhan Pamuk, Amos Oz, Philip Roth, J.M. Coetzee e Roberto Bolaño, buscou nos clássicos os personagens mais marcantes da literatura e leu até o bíblico Eclesiastes. “Li e reli mais de 100 vezes, e mais de 100 vezes me convenci de que, de fato, ‘Correr atrás do sentido da vida é correr atrás do vento’. A partir dessa base movediça, mas estimuladora, eclodiu romance sem nenhuma ilusão sobre o fato de que a vida é buraco negro, com raros pontos de luz”, garante.
Manoela e Izac nasceram desse embate. No livro, os personagens estão em situações extremas e se debatem com a existência antes de concluir que nem a literatura nem a psicanálise dão conta da vida. “A literatura e a psicanálise, juntas e mancomunadas, não acrescentarão vírgula sequer às nossas atribuladas existências”, escreve o autor. Manoela está morta, sucumbiu a um câncer e tem urgência em escrever. Izac está quase lá e repassa a própria vida a partir de um submundo no qual decidiu adentrar.
As vozes se alternam na narrativa e o abismo está sempre à vista para os personagens. 2 1 foi escrito em sete meses, mas levou 10 anos para ser gestado. E trata com crueza e sinceridade de aspectos nada solares da condição humana. “Os personagens de meu romance já abdicaram da fruição da grande arte, das crendices religiosas e da psicanálise, e enfrentam essa galáxia selvagem com a cara e a coragem, nus em pelo. Diante desse mundo em disrupção, será tolo e inócuo engabelar o leitor com esperanças a respeito de falsas redenções”, avisa Menezes.
2 1
De Rogério Menezes. Bissau Livros, 188 páginas. R$ 40
2 1 é, também, um romance sobre a literatura e seu lugar no mundo? Qual o papel da literatura para você?
Se o certo é duvidoso, como canta o Eclesiastes, crer pra quê, acreditar em quê? Escrevo por motivos prosaicos, entre outros, porque preciso abrir janelas na minha alma, pelas quais eu possa atirar algumas pedras. Escrevo também para tentar evitar que eu enlouqueça — e tenho mais medo de enlouquecer do que de morrer. O papel da literatura, para não deixar sua pergunta sem resposta: desmontar ilusões. A vida é massacre diuturno, ponto. Nada a fazer a não ser tentar atravessar o Rubicão sem choro nem vela. Simples assim. Inexorável assim.
“Pessoas que amam e pessoas que fazem tudo por amor costumam cobrar caro depois. Muito caro”: isso também não nos torna humanos? Para você, quem ou o que Manoela personifica ao falar sobre amor?
O amor, ah, o amor. Disparo boutade a respeito — que atribuiria a Manoela ou Izac-Sâmeq: o amor é droga como outra qualquer, com todos os efeitos colaterais dos dopamínicos disponíveis no mercado e, como tal, deve ser usada com moderação, ou descartada por aqueles que já possam se livrar dessa “dependência química”. O senso comum repete: o amor cega. Alguns poetas peroram: o amor entontece. Manoela pagou caro por essa cegueira, livrou-se dessa “doença”, mas, vítima de outra ainda mais letal, à beira da morte, se deixa sangrar, e expulsa todos os demônios que a devoram e a destroem. Manoela tem algo de Bazarov, o personagem criado pelo seminal escritor russo Ivan Turgueniev no romance Pais e filhos, que nega que nós, seres humanos, sejamos capazes de amar de fato, sem moedas de troca. Só amamos aquilo, ou aquele, que nos apraz, que nos proporcione algum tipo de apreço ou afeto-pagamento.
Em certo momento, um dos personagens conclui que “Viver é brincar de cabra-cega”: como se salvar nesse redemoinho?
Para Manoela e Izac-Sâmeq, a vida não tem bula, nem nunca terá. Estamos ao léu, à deriva. Jamais existirá manual que aponte orientações sobre o uso do produto-vida ou sugira os efeitos colaterais que a vida-produto acarreta. Milhões de pessoas procuram quiromantes, cartomantes, consultam ichingues, e recorrem a zilhões de fórmulas e bruxarias esdrúxulas para saber o que irá lhes acontecer no porvir. Em vão. Ninguém nunca saberá o que poderá nos acontecer. Manoela crê que, de fato, viver é brincar de cabra-cega.
Você também é jornalista e há várias referências ao jornalismo no romance, muitas vezes com um certo deboche. Por quê?
Amei a literatura antes de amar o jornalismo, mas vi no jornalismo a oportunidade de me aproximar da literatura. No exercício do jornalismo, mesmo me especializando em reportagens de comportamento e atuando quase sempre como repórter e editor de Cultura, percebi: o jornalismo, impregnado de um obcecado caráter de escrever a verdade, somente a verdade (mas quase sempre de maneira torta), não me bastava. Meu lado escritor gostava de mentir, de inventar histórias, e esse, digamos, lado B, não era bem-vindo no ofício jornalístico. Transformei-me em agente duplo: contava histórias verdadeiras no jornalismo e inventava tramas em contos, crônicas e pequenos livros que comecei a publicar. Adoro o jornalismo. Realizar grandes reportagens sobre temas linkados à vida real e escrever perfis de grandes personagens sempre me fascinaram e ainda me fascinam.
Em tempos de lugar de fala, como fica o autor de ficção que se coloca na voz de personagens de todos os gêneros? Você teve algum tipo de preocupação-inquietação ao escrever, por exemplo, na voz de Manoela ou Lita?
Admito que essa discussão sobre lugar de fala é necessária e iluminista – nestes tempos de obscurantismo planetário em todas as áreas do conhecimento humano, qualquer intenção de impedir o avanço das trevas é bem-vindo. Mas intelectual e homem vivido que sou, admito certo enfado em polemizar sobre esse tema ou sobre qualquer outro tema. Limito-me a afirmar, do alto de minhas mais de cinco décadas de fruição literária: quatro das mais seminais personagens femininas da história da literatura mundial foram ‘paridas’ por homens: Tolstoi (Ana Karênina é sublime). Flaubert (Madame Bovary não era ele) e Balzac (Memórias de duas jovens esposas, obra na qual as personagens Luisa de Chalieu e Renata são mulheres esplendorosamente verazes). Desce o pano (rsrs).